Está certo que Ike Turner foi um péssimo maridão e sua ficha incluía várias estadias em prisões do estado da Califórnia por consumo e tráfico de cocaína. Em compensação, ele foi o homem que gravou em 1951 - com apenas 20 anos! - o primeiro rock and roll da história ("Rocket 88") junto à banda Kings of Rhythm. Foi quem descobriu e lançou aquela mulher, quem montou um dos shows mais tórridos dos anos 1960 - em competição direta com James Brown - e gravou os vinte e três singles que compõem essa coletânea indispensável. Assim, ele não pode ser de todo ruim.
Basta uma rápida olhada na biografia de Ike e Tina Turner para sacar como os produtores de Hollywood estavam dormindo no ponto. E até mesmo o recém-lançado filme What's Loves Go to Do With It (que no Brasil foi batizado apenas como Tina) não deve dar conta da história desse casal que começou do nada , que virou lenda e que acabou em ópera bufa.
Nos dezessete anos em que atuaram juntos, Ike e Tina não mostraram talentos excepcionais de compositores. Ele, um pianista e guitarrista autodidata que começou tocando com B.B. King, Howlin' Wolf e Johnny Ace, foi um arranjador de primeira grandeza e um produtor musical irregular. Ela, o vulcão que todos conhecem, até hoje talvez a única cantora negra capaz de rivalizar com Aretha Franklin.
Editada em 1991, esta coletânea é por enquanto o melhor registro disponível da trajetória musical do casal. Começa com os sete primeiros singles (registrados de 1960 a 1962): de "A Fool in Love" a "You Should'a Treated Me Right". Eles flagram em gravações mono a transição do rhythm and blues para o soul.
Ficam entre parênteses os anos de turnês intermináveis de Ike and Tina Turner Revue, um período marcado por trocas frequentes de gravadoras, por singles raros e pelo episódio Phil Spector, quando o famoso produtor "alugou" a voz de Tina a peso de ouro (por 20 mil dólares) em 1966, para gravar "River Deep, Mountain High" - que se tornou um grandioso fracasso de vendas.
A seleção pula direto de 1962 até 1969 e pega fogo instantaneamente na fusão soul/rock, sintetizadas nas fantásticas versões de canções dos Beatles ("Come Together"), dos Rolling Stones ("Honky Tonk Women"), de Sly and The Family Stone ("I Want to Take You Higher"), do Creedence Clearwater Revival ("Proud Mary") e The Who ("Acid Queen" da ópera rock Tommy, que foi levado às telas com a própria Tina no papel da Rainha do Ácido). Não é exagero dizer que todas elas conseguiram superar as versões originais, e nesta compilação foram intercaladas por preciosidades do calibre de "Nutbush City Limits" e outras jóias obscuras.
No fundo a história do caso Ike e Tina Turner levanta a seguinte dúvida: o fato de realizar obras de arte relevantes pode redimir um criminoso drogado que espancava e aprisionava sua mulher?
Você decide. Mas antes de tudo, escute este disco.
Texto escrito por Jean Yves de Neufville e publicado na Bizz #097, de agosto de 1993
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