Quadrinhos: Senhor Milagre Vol. 1, de Tom King e Mitch Gerards


É improvável, para não dizer extremamente raro, encontrar referências a um assunto como o suicídio em uma história em quadrinhos de super-heróis. E Senhor Milagre, escrita por Tom King e ilustrada por Mitch Gerards, joga esse tema na cara do leitor logo nas primeiras páginas. Scott Free, o personagem principal, o Senhor Milagre, é um deus do Quarto Mundo criado por Jack Kirby em 1971. Ele é filho do Pai Celestial, regente de Nova Gêneses, que, em um acordo para tentar a paz com Apokolips, o deu para o governante do local, Darkseid, e recebeu em troca seu filho Orion. Ou seja: Scott foi criado por Darkseid, enquanto Orion foi criado pelo Pai Celestial. Isso tudo é contato em Quarto Mundo, uma das sagas mais importantes e influentes da DC, e que permanece praticamente inédita no Brasil mais de 40 anos depois do seu lançamento. E só pra constar: é em Darkseid que a Marvel se inspirou para criar Thanos.


Senhor Milagre é uma série em 12 edições que foi publicada pela DC entre o final de 2017 e os últimos meses de 2018. O título está sendo publicado agora no Brasil em dois encadernados de capa cartão e papel couché. A série venceu o Eisner Award, o maior prêmio da indústria dos quadrinhos, em 2018.


King já havia abordado o suicídio em seu trabalho com o Batman, no arco Eu Sou Suicida, onde revelou que o jovem Bruce Wayne pensou em tirar a própria vida após o assassinato dos pais. Em Senhor Milagre, a abordagem é diferente. Scott Free é um deus, porém um deus atormentado, que sofre de paranoia, apresenta sintomas de esquizofrenia e uma certa dificuldade em discernir sobre o que é real e o que é fruto de sua imaginação (dúvida essa que gera um dos melhores momentos da história, quando o personagem cita o filósofo francês René Descartes e o pensador alemão Immanuel Kant). Todo esse contexto é intensificado quando Nova Gênesis e Apokolips declaram guerra, e o Senhor Milagre precisa participar ativamente do conflito.




Um dos grandes acertos do roteiro é colocar Grande Barda, a esposa de Free, como co-protagonista da série. Ela funciona como guia, como âncora e como escudo para o personagem principal, conduzindo-o através da trama e protegendo-o quando necessário. Barda, que foi inspirada na relação de Kirby com sua esposa Roz, é fascinante e complexa, bela e apaixonante, de uma profundidade inebriante e poucas vezes vista. Enquanto Scott é emoção pura, Grande Barda compartilha o seu entusiasmo mas também é o fio condutor que o mantém são em um mundo que desmorona a cada página.


O texto de Tom King faz com que Senhor Milagre seja uma HQ carregada de um forte apelo filosófico e, até certo ponto, transcendental. Mesmo tendo um conflito de proporções épicas como pano de fundo, o protagonismo está sempre nas discussões e escolhas de vida dos personagens e não nos socos trocados entre eles. Já a arte de Mitch Gerards é algo próximo do sublime. Um dos melhores ilustradores da atualidade, Gerards constrói toda a narrativa com páginas compostas por nove quadros, escolha que remete a Watchmen e clássicos de gigantes como Will Eisner. Esse aspecto faz com que a história tenha um ritmo constante, intensificado pelo casamento perfeito entre texto e arte. A parceria entre King e Gerards, já azeitada pela ótima Xerife da Babilônia, dá aqui um passo além e coloca a dupla um, dois, três e vários degraus acima da grande maioria dos autores de quadrinhos atuais.




A Panini ainda não anunciou quando lançará o segundo e último encadernado de Senhor Milagre. Ainda não há certeza de quando ele chegará às bancas, mas isso deve ocorrer nos próximos meses. Porém, ao ler essa HQ, é impossível não perceber que estamos diante de algo totalmente fora da curva dentro do universo de super-heróis, e que só encontra um equivalente semelhante em uma obra do próprio Tom King publicada no Brasil em 2018: sua interpretação para Visão, da Marvel. Assim como fez com o androide, e segue fazendo em sua fase no Batman, o roteirista humaniza os personagens, tira a armadura de super-herói de seus protagonistas e os insere em uma realidade construída com elementos do cotidiano. Não é à toda que os melhores momentos tanto de Senhor Milagre quando de Visão e do Batman não estão nas lutas e nos feitos impossíveis, mas sim em momentos do dia a dia como a conversa durante o café da manhã, a reunião de família durante o jantar e as confissões mútuas de uma casal apaixonado.


O que faz de Senhor Milagre um quadrinho tão bom é justamente isso: ele não precisa de feitos extraordinários para impressionar o leitor. Seu maior milagre é mostrar o quanto a própria vida é uma jornada cheia de momentos inesquecíveis e surpreendentes.


Comentários

  1. O quadrinho ainda não veio para as bancas aqui de Sp
    Estava no checklist de dezembro e até agora não mandei e-mail e até agora nenhuma resposta �� To quase achando que vai ser um milagre sair em bancas kkkkk

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