Review: Santana – Abraxas (1970)


A riquíssima variedade de sons da América Latina entrou de sola no universo do rock internacional nos anos 1970 com um virtuoso da guitarra vindo diretamente do México chamado Carlos Santana. Com um swing repleto de referências de ritmos latinos como salsa e mambo, acrescentadas com a liberdade do jazz e a carga pesada do blues, o mexicano consolidou neste seu segundo disco a épica atuação no Festival de Woodstock de agosto de 1969, com um som mais maduro e com um direcionamento que o diferenciava das demais bandas da época. Abraxas, palavra utilizada dentro do universo gnóstico cujas sete letras representam cada um dos sete planetas, é um marco da influência latina no rock tão importante quanto “La Bamba”, aquela dançante canção folclórica mexicana adaptada em 1958 pelo genial Ritchie Valens.

O mundo do rock sentia e aceitava novamente o peso latino mesclado com guitarras afiadas, e para alcançar esta sonoridade o jovem guitarrista selecionou apenas gente que sabia o que estava fazendo: o sensacional tecladista/pianista/organista Gregg Rolie, o baixista David Brown (que segura a bolacha toda com maestria, e olha que manter a pegada groove de algo tão latino e jazzístico como o que foi feito neste disco não é para qualquer um), a locomotiva  Michael Shrieve na bateria (que ficou igualmente famoso tanto quanto Santana pelo filme de Woodstock durante o seu épico solo em “Soul Sacrifice”) e a seção rítmica formada pela dupla José "Chepito" Areas e Michael Carabello, ambos responsáveis pelos timbales, congas e todo o tempero das músicas.

A instrumental “Singing Winds, Crying Beasts” abre de maneira climática o disco com pequenas entradas lisérgicas de órgão e guitarra com um insistente ritmo percussivo ao fundo - tudo com um tranquilo piano elétrico fazendo a cama. De maneira irônica é o baterista Mike Shrieve quem recebe o crédito exclusivo para esta canção, mesmo ela tendo pouca bateria, e a percussão é executada pelas congas e timbales de Carabello e Chepito. Seja como for, a música vai abrindo espaço para a primeira paulada do disco: “Black Magic Woman/Gypsy Queen”.

O grande sucesso do álbum traz a fórmula que consagraria Santana de vez: percussão com sotaque espanhol e um ritmo bluesy marcado pelo baixo classudo de Brown, que serve para o mestre solar por diversas vezes de maneira espontânea e criativa, abusando de acordes, power chords e muita distorção. Quem canta na canção é Gregg Rolie, que mandou muito bem ao assumir a responsabilidade de imortalizar a faixa.

O que pouca gente se lembra (ou sabe) é que  “Black Magic Woman” é uma releitura de uma composição de 1968 do Fleetwood Mac, escrita pelo seu guitarrista e fundador Peter Green: um blues chamado “I Loved Another Woman”. Santana  ainda acrescentou no trecho final da música um instrumental chamado “Gypsy Queen”, composto pelo guitarrista húngaro de jazz Gabor Szabo. Essa mistura de jazz com blues para duas criações de terceiros adaptadas e unificadas pelos ritmos latinos rendeu a Santana uma das maiores músicas de todos os tempos.


A versão do guitarrista para o clássico do maestro Tito Puente, “Oye Como Va”, é outra que se destaca e muito neste disco - com letra em espanhol e uma série de batucadas que parecem evocar alguma entidade maia. Santana honrou o DNA da salsa, que estava em alta com artistas como o próprio Tito Puente, Willie Colón e Hector Lavoe. O som afro-cubano que Shrieve e a dupla de percussão fornecem dá o contrapeso fundamental para a magia da faixa, sem contar que é praticamente impossível tirar o som do órgão da cabeça, principalmente no solo, que é pra lá de inspirado.

A magia do jazz corre solta na pesada “Incident at Neshabur”, mostrando que Carlos Santana realmente se cercou de profissionais do mais alto quilate para desfilar ao seu lado. Nem precisa dizer que nesta instrumental, que alterna momentos de improvisação com trechos mais pesados, é o solo de Santana que pede passagem e se destaca. É um dos pontos altos do disco se desconsiderarmos as canções que fizeram sucesso instantaneamente (“Oye Como Va” e “Black Magic Woman”) e é pedida fácil para quem adora boa música.

E o álbum segue com a rápida “Se a Cabo”, outra instrumental com pegada latina e distorção de sobra (e que saiu com a grafia errada no LP, uma vez que o correto em espanhol seria “Se Acabó”),  e a agitada “Mother's Daughter”, cujas guitarras tem uma clara influência de Jimi Hendrix em determinados momentos e deslizam com um riff criativo. A genial letra parte do ponto de vista de um homem que não suporta mais ser maltratado pela sua namorada. No final da história, como vingança, o cidadão acaba tendo um caso com a mãe da menina.


Quando chegamos na delicada e emocionante balada instrumental “Samba Pa Ti”, a coisa fica mais séria e Santana envolve a todos nós em uma atmosfera tranquila e emotiva, com uma pegada soft blues. As seis cordas praticamente choram uma das melodias mais reconhecíveis do guitarrista, fazendo desta composição uma grande pérola, séria candidata à melhor música do disco. Em novembro de 2008, Santana declarou para a revista Mojo que estava em sua casa quando escutou a música pela primeira vez na rádio, e foi neste momento que ele se reconheceu como guitarrista autêntico, com o seu próprio DNA sonoro sem a sombra de outras grandes mestres que ele adorava como B.B. King, George Benson e Peter Green.

Na contramão da delicadeza de “Samba Pa Ti” surge “Hope You're Feeling Better”, com distorções de tudo que é tipo e que nos leva novamente para a bolha roqueira, lembrando que o mundo da música aceita toda e qualquer influência e pode abraçar todos os bons ritmos - o disco tinha partido para a salsa, passou pelo jazz e pelo  blues antes de voltar aqui para um som mais agressivo. E para confirmar o que eu acabei de dizer, a seção rítmica do super grupo de Santana fecha os trabalhos com a curtinha “El Nicoya”, uma rápida viagem à América Latina para marcar território e mostrar que a língua espanhola pode sim ter vez no eclético mundo dos rock.

Se tivesse que escolher apenas uma música do disco?

“Oye Como Va” é uma salsa e quem se atreveria a levar este ritmo tão típico de Cuba, Porto Rico e demais países da América Central e do Sul para o universo do  rock - e ainda por cima com a letra em espanhol? Pela execução perfeita esta é a escolhida!

Por Aroldo Antonio Glomb Junior

Aroldo Antonio Glomb Junior tem 41 anos, é jornalista, Athleticano e fanático por boa música desde que completou seus 10 anos de idade. É o autor do projeto SOBRE O SOM DOS SETENTA, que reúne resenhas de diversos discos lançados durante os anos 1970, escrevendo desde clássicos da década até discos mais obscuros, independente do estilo.

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