"Quem toma antidepressivos para morrer? Com tantos
barbitúricos e opções mais eficazes por aí ...". Assim o legendário
jornalista inglês Nick Kent questionou o suicídio de Nick Drake, em 1974.
Esquizofrênico genial? Um homem comum vivendo uma história incomum? Ou, como
interpreta outro renomado crítico, Ian McDonald (contemporâneo do artista na
Universidade de Cambridge), um emblema do idealismo hippie sufocado pelo
espírito da época?
Muitas são as teorias sobre esse cantor e compositor
inglês que sucumbiu a distúrbios psiquiátricos aos 26 anos. O fato é que as 31
canções que deixou registradas em três LPs lhe valeram uma grandiosa reputação
póstuma. O dono da gravadora Island, Chris Blackwell (responsável pela projeção
alcançada por U2 e Bob Marley, entre outros), alimenta o culto desde 1979,
quando organizou o relançamento de sua obra em um álbum triplo, Fruit Tree.
Em 1986 saiu um quarto disco, Time of No Reply, raspando o baú de
gravações inéditas (Renato Russo maltratou uma dessas canções, "Clothes of
Sand", no trabalho solo The Stonewall Celebration Concert, de 1994).
Há quem o considere um letrista imaturo, amálgama mal
disfarçada de influências que vão do haicai japonês a Bob Dylan, passando pelos
obrigatórios franceses Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Impossível, porém, negar
o tom sublime que seus versos atingem depois de embalados nos arranjos de "Northern
Sky", "Hazey Jane I" ou "One of These Things First",
incluídas em Bryter Layter.
Há ainda quem prefira o pungente Pink Moon (1972), terceiro
álbum, gravado em duas noites já submerso em profunda depressão. O
primeiro, Five Leaves Left (1969), lançado quando Drake era um estudante, também
tem seus adeptos - sozinhas, "Time Has Told Me" e "River
Man" valem por um bom pedaço do clássico Astral Weeks (1968), do bardo
irlandês Van Morrison.
Bryter Layter, se não tem as passagens de violão de Pink
Moon, é o produto musicalmente mais bem acabado de Drake. Quando o disco saiu,
em 1971, o produtor Joe Boyd (responsável por alguns dos melhores trabalhos do
folk inglês) previu para o jovem trovador um longo futuro como astro. Não podia
dar errado. Canto suave, quase falado, à brasileira. Lindas introduções ao
violão, delicados arranjos acústicos com orquestrações infalíveis, Hendel a
pinçar as aortas dos ouvintes pop.
O resultado? Na época, meras 15 mil cópias vendidas.
Ações promocionais que levaram a esse pífio desempenho: meia dúzia de shows
erráticos e uma (uma!) entrevista em que o artista se confessava desconfortável
com o que havia registrado.
Inexplicavelmente, Nick Drake parecia não se sentir à
vontade com o mundo. Nascido na classe média alta, esportista durante a adolescência,
ele passou saisons de intercâmbio na Provence francesa, se divertiu no
Marrocos, levou vida de jovem feliz até ... Bem, até mergulhar no violão e no
haxixe (possível catalisador de uma esquizofrenia) nos anos em que passou em
Cambridge.
Na época em que compôs o material de Bryter
Layter já era um rapaz triste, macambúzio, morando sozinho em Londres.
"At the Chime of a City Clock", quase um poema beat com sax alto e
violinos a caminho do céu, persegue transcendências urbanas e denuncia as
circunstâncias cinzentas nas quais o disco foi criado. A animada "Hazey
Jane II", com leve sotaque country na guitarra e metaizinhos safados, é um
acesso de bom humor, fala até em recomeçar.
Bryter Layter jamais é depressão, nunca soa como o
lado escuro de um poeta atormentado e incompreendido - nem na mais triste de
suas faixas, "Fly", que tem John Cale tocando viola e cravo e já
parte implorando: "Por favor, me dê uma segunda graça". Em "Poor
Boy" há até auto ironia, um coro feminino a debochar: "Que pobre
garoto / com tanta pena de si mesmo".
Mas prenda a respiração ao ouvir o mundo de
possibilidades desfiadas em "One of These Things First" ("Eu
poderia ter sido um marinheiro, poderia ter sido um cozinheiro / ... um amante
realmente vivo, poderia ter sido um livro / Mas como?") e tente não se
arrepiar com "Northern Sky", uma das mais emocionantes canções de
amor já escritas: "Você me amaria pelo meu dinheiro?/ (. .. ) Você me
amaria até eu morrer?".
De escuras coincidências e iluminações, assim se fazem os
mitos.
Texto escrito por Pedro Só e publicado na Bizz #182, de
setembro de 2000
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