Cinebiografias costumam ser problemáticas, principalmente quando os biografados ou pessoas próximas a eles estão envolvidas na produção. Portanto, o anúncio de que o próprio Elton John seria produtor executivo de Rocketman, longa-metragem que conta sua história, deixou muitos com um pé atrás. Nem precisamos ir longe para lembrar de outros exemplos de cinebiografias prejudicados pela superproteção dos produtores: no ano passado, o problemático Bohemian Rhapsody foi bastante criticado por ser chapa branca, muito graças à produção de Brian May, guitarrista do Queen.
Felizmente, Rocketman passa longe disso. A obra, que se estrutura como um verdadeiro
exercício de autoanálise do lendário músico inglês, começa com Elton John
adentrando um grupo de apoio com uma de suas mais extravagantes fantasias, até
que, aos poucos, revela-se um sujeito mentalmente quebrado, refém dos vícios em
compras, drogas, sexo e álcool. A biografia, portanto, em momento algum tenta
minimizar ou esconder os problemas que permeiam a mente do pianista. Em vez
disso, os expõe e coloca Elton no divã. Acompanhamos um ser humano que precisa
compreender a si mesmo para, então, encontrar seu caminho.
É interessante como esse processo de análise começa com uma
própria digressão do protagonista, que enxerga sua versão mirim e, ao
persegui-la, começa a refazer os passos de sua juventude para se entender e,
finalmente, aceitar. É um personagem que, desde o começo, teve sua sexualidade
reprimida e rejeitada pelos pais – algo que o filme acerta ao explorar sempre
por sutilezas, como o pai que proíbe o filho de folhear um livro com imagens de
vestidos por ser algo de “garotinhas”.
Também
é bem explorada a força artística de Elton John. Nas primeiras cenas musicais
do filme, por exemplo, o protagonista não só encabeça os momentos, como aparece
como um verdadeiro maestro para as danças. Se em um primeiro momento vemos o
jovem Elton se imaginando como regente de uma orquestra antes de dormir, pouco
depois, quando o músico já é um jovem adulto, uma cena musical ambientada em um
parque traz um grande grupo de pessoas dançando e, de frente para elas e de
costas para a câmera, o personagem principal. É como se Elton não fosse parte da
coreografia, mas o cérebro por trás dela, a inspiração, fortalecendo sua força
como artista.
Rocketman consegue, portanto, estabelecer com calma e eficiência todos os conflitos da
infância de seu protagonista, para que possamos, então, compreender como cada
um deles reflete nos problemas enfrentados pelo artista ao longo da vida. Essas
nuances emocionais da trajetória do personagem também refletem de forma como os
musicais são construídos. Se as primeiras cenas musicais são dessaturadas e com
poucos movimentos de câmera, aos poucos a dança, as cores e um estilo de
filmagem mais frenético e picotado pela montagem tomam as rédeas da narrativa.
Os musicais também são bem utilizados como transições de fases da
carreira do biografado, e seu uso, assim como sua estética, também muda ao
longo da narrativa. Os primeiros musicais são um belo dispositivo para
ambientar o espectador nas diferentes fases da vida do protagonista, enquanto
os que são projetados no período do auge da carreira de Elton John acabam sempre
sendo sucedidos por momentos nos quais o cantor surge confuso, como marcando a
crescente desorientação e isolamento que se intensificam juntamente à ascensão
meteórica.
É
perceptível, porém, que há uma interrupção no processo de exposição do
personagem. Em dado momento, quando acompanhamos Elton no grupo de terapia, não
vemos mais o personagem removendo as peças de sua fantasia, e sim fechando um
casaco, como se buscasse se preservar, se proteger. Como se a obra tivesse,
naquele momento, chegado no período de maior fragilidade psicológica do
personagem.
O
que se sobressai nesse processo de desconstrução da persona Elton John, no
entanto, não é simplesmente a exposição e o estudo narrado pelo próprio
artista, e sim o fato de o longa-metragem não buscar apaziguar todos os
conflitos. Reconhecendo a humanidade e a imperfeição da história, o roteiro de
Lee Hall apresenta alguns conflitos específicos que não possuem a conclusão
esperada. São histórias e subtramas sem finais felizes. É, por isso, uma obra
que reconhece como as cicatrizes e fracassos também fizeram do ícone do rock o
ser que ele é hoje. São marcas que, por mais que sejam doloridas, cimentaram a
trajetória do artista.
O personagem Elton John é uma figura não só capaz de construir
harmonias incríveis, mas também de absorver o que acontece a sua volta e, com
isso, sempre se reinventar em algo novo. Narrativamente, o fato de o
protagonista sempre vestir diferentes fantasias representa muito bem isso.
Alguns detalhes menores acabam engrandecendo ainda mais essa faceta do
personagem, como o fato de Elton utilizar um chapéu de caubói em um certo
momento de sua carreira, algo que referencia a paixão de Bernie, seu melhor
amigo, pelo estilo de vida caubói.
Rocketman vai fundo nos medos, anseios, traumas, realizações e
conflitos da carreira de um artista consagrado. Respeitando a persona biografada,
mas também conseguindo retratar seus momentos de maior fragilidade, o longa de Dexter Fletcher é extremamente
beneficiado por nos colocar na perspectiva de um homem que está em processo de
autoanálise. Somos premiados, portanto, com um estudo de personagem bastante
competente e que, de quebra, possui números musicais encantadores pelos motivos
estéticos já mencionados. Não poderíamos esperar menos de um longa que homenageie
uma figura da estatura de Elton John.
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