Conheço o Márcio Grings há vários anos. Ambos somos apaixonados
por música, produzimos conteúdo sobre o assunto e escrevemos nos sites um do
outro, em uma relação que, no que me toca, é fundamental para que eu me torne
não apenas um escriba melhor e mais completo, mas sobretudo um ser humano mais
maduro e ciente do mundo.
No entanto, nunca nos encontramos pessoalmente.
A entrevista que você lerá abaixo mostra o porque de o
Márcio merecer todos os elogios possíveis. Uma voz independente, com opiniões próprias e lúcidas sobre o jornalismo cultural e a arte de escrever
sobre esse tema incrível que é a música.
Ao final da leitura você sentirá o que eu sinto: apesar
de nunca termos apertado as mãos e dividido uma mesa de bar, o Grings é como um
amigo de longa data e uma influência sempre presente
Pra começar, fale um pouco sobre a sua trajetória
profissional. Onde começou, em quais lugares já trabalhou e onde podemos
encontrar os seus textos hoje em dia.
Profissionalmente, sempre fui ligado à música. Com 17
anos comecei a trabalhar em lojas de discos, ainda na época dos LPs, no final
dos anos 1980. Aos 22, fui gerente e comprador de uma das lojas mais
tradicionais do interior do RS, a extinta Bobbysom. Nessa mesma época, comecei
no rádio, onde mantinha participações em programa locais. Também vivenciei o
início da comercialização dos CDs e todo aquele boom no mercado, a consequente
expansão do formato compact disc, e consequentemente a morte anunciada dos long
plays.
Quando você começou a escrever sobre música?
Em 1994, comecei a publicar breves reviews de lançamentos
daquele período num jornal local. Antes disso, sempre tive o costume de
escrever sobre meus álbuns favoritos, anotações que apontava em rascunhos e os
guardava dentro das capas dos LPs. Anos depois, durante minha passagem pela
RBS, entre 2006 e 2014, acabei me tornando colunista de jornal e coordenador
local da Rádio Itapema, ao qual também mantinha uma plataforma ligada ao Clic
RBS, o Blog do Grings.
O que o motivou a escrever sobre música?
A necessidade de compreender o impacto de certos álbuns,
artistas e obras em nossas vidas. Bem antes das biografias musicais virilizarem
nas livrarias do país, eu importava livros de Portugal para poder ter acesso a
mais informações. Era assinante da revista Bizz, assim como consumia
praticamente tudo que era lançado em publicações do gênero.
Sobre quais gêneros musicais você escreve?
Minha principal linha de atuação advém do cenário do rock
internacional feito nos anos 1960/70/80. Acredito que a minha geração, que
cresceu ouvindo música ainda na primeira metade da década de 1980, pegou um
delay dos discos lançados lá fora 10, 15 anos antes. Então, enquanto no rádio
tocavam canções do The Cure, Talking Heads e rolava toda aquela movimentação de
ascensão do rock nacional, no meu toca-discos eu fritava os vinis do Led
Zeppelin e Deep Purple. Acabei me ligando mais nesse período do rock. Depois
ainda descobri Bob Dylan, Neil Young, etc, e como ouvinte, o movimento de
retorno me deslocou ainda mais no tempo, salvo exceções.
Quais foram as
suas principais influências no jornalismo musical?
Acho que os caras da Bizz foram os primeiros a me
influenciarem, uma revista que caiu como uma luva nas décadas de 1980/90.
Também me ligava no material publicado sobre música no Segundo Caderno do
jornal Zero Hora. Ainda lembro das publicações da Somtrês, principalmente as
revistas especiais dedicadas às bandas. Numa época sem internet, pré-Google,
num gigantesco Saara de impossibilidades e falta de informação, esse material
fornecia um raro combustível de qualidade, asas para vivenciar as histórias e
lendas por trás de cada personagem musical.
O que você mais
gosta de produzir dentro do jornalismo?
Acabei atuando mais nos gig reviews, uma forma de contar
e registrar minhas visões sobre os espetáculos internacionais que assisti ao
longo dos últimos vinte anos. Via www.gringstours.com.br
dá pra sacar esse histórico, um documento que relata mais de 70 shows gringos,
90% deles assistidos como jornalista musical credenciado pela imprensa. De todo
o modo, em outro canal, o www.gringsmemorabilia.com.br,
eu também escrevo sobre álbuns, artistas/bandas e falo bastante sobre o
universo musical.
Na hora de analisar um disco, quais aspectos da obra você
costuma avaliar e dar mais peso para chegar a uma conclusão sobre o álbum?
A emoção é a maior das drogas. O sentimento de se
emocionar ouvindo um disco é o ponto de partida para que uma conexão se
estabeleça. Um riff, uma letra bacana, uma referência que nos ligue a memória
afetiva, uma boa canção. Não há um caminho definido, muitas vezes o mais
simples pode soar mais genial. A sensação de ouvir algo novo sempre me
inspira. No caso dos shows, essas impressões viram um documento textual
que me faz relembrar grande parte daquilo que vi, ouvi e senti.
Como é seu método de escrita? Como é a sua rotina
na hora de analisar um disco ou produzir uma matéria? Sai tudo de uma vez ou
esse processo leva alguns dias?
Eu gosto de não perder o senso literário. Um bom review
precisa funcionar de uma forma atemporal, precisa se utilizar de impressões
pessoais que nem sempre reflitam uma verdade absoluta, mas precisa se utilizar
de certa coragem em declamar essas impressões. Gosto de ouvir repetidas vezes o
material em análise, ficar isento da contaminação de ler outros reviews. Essa
‘ingenuidade’ de apreciar um conjunto de canções com os ‘olhos vendados’ muitas
vezes nos isenta de cair no lugar comum, nos dá a possibilidade de enxergar
aquilo que não enxergaríamos se tivesses todas as cartas na mão. Quanto às
informações complementares, na minha forma de escrever, se encaixam
perfeitamente na apuração final, na derradeira checagem antes de publicar o
material, que muitas vezes confirmam nossas convicções. No entanto, se fosse tentar
definir minha autêntica intenção ao escrever um review, diria que nunca gosto
de me afastar de uma visão literária, poética, às vezes até mesmo utópica, mas
impregnada de sentimento e verdade, sensações que precisam vir à tona quando
relatamos o impacto de uma obra musical em nossas vidas.
Quais jornalistas musicais você gosta de ler e
influenciaram o seu trabalho?
Da Bizz, nomes como Alex Antunes, André Forastieri, Pedro
Só, Emerson Gasperin, Ricardo Alexandre, entre outros. Da ZH: Juarez Fonseca, Eduardo
Bueno, Marcelo Ferla e Renato Mendonça. Mais tarde, uma obra que curti demais e
me afirmou o senso literário da escrita musical foi do Lester Bangs, no livro
Reações Psicóticas, uma reunião de textos e reflexões sobre John Lennon,
Elvis Presley, Lou Reed, Iggy Pop, Van Morrison, David Bowie, e aí vai.
Bangs é o Bukowski do jornalismo musical, e seus reviews soam como ficção.
Quais veículos sobre música você indica não apenas pra
quem quer se informar sobre o assunto, mas também para quem deseja encontrar
matérias de qualidade e que podem ser úteis para iniciar no jornalismo rocker?
Falando em internet, por exemplo, a própria plataforma
que agora me entrevista, a Collectors Room. Meu briefing musical diário passa
pela Collectors. Dentro dessa atividade, ainda utilizo muito o Twitter, pois
sigo uma série de veículos gringos nos dois lados do Atlântico, plataformas de
sites e revistas inglesas e norte-americanas que acabam antecipando boa parte
do material que será publicado por aqui.
Em uma época onde as opiniões são instantâneas, a crítica
musical ainda importa e segue sendo relevante?
A crítica musical está com os dias contados. Eu sou um
cara que acredita no texto, que gosta de ler, que não se importa em debulhar um
calhamaço de informações por trás da palavra escrita. De todo o modo, não
visualizo mais sustentabilidade nessa atuação. A rapaziada que curte música
hoje, grande parte desses jovens, consomem música no celular, não exercem a
cultura do culto à música. Nossa geração ainda vê a música como uma atividade
intelectual, mas tenho certeza, isso está morrendo. Da minha parte, posso
afirmar, vou morrer escrevendo sobre música, em primeiro lugar porque faço isso
por mim mesmo, como arquivista das minhas próprias lembranças, que felizmente
acabam sendo divididas com meus leitores.
O quanto o hábito da leitura é importante na construção
de um estilo própria, de uma voz, dentro da crítica musical?
Tudo. A ligação com a leitura e as referências literárias
são importantíssimas. Sam Shepard pode me dar um mote para iniciar um review,
como aconteceu num show de James Taylor.
O quanto consumir não apenas outros estilos musicais, mas
também outras formas de arte, é importante para o trabalho de um jornalista de
música?
Como já disse antes, essa amplitude certamente fornece
lastro para um repertório autêntico e fora da curva. Esse é o caminho que me
inspira.
O que é ser um crítico de música hoje em dia?
Não sei se me considero um crítico musical. Em 2006
publiquei um livro de ensaios sobre música e cinema, Vivendo à Sombra dos
Gigantes, um apanhado com várias visões particulares. Lendo os textos que criei
há mais de 10 anos, discordo de grande parte deles (risos). Aquilo que bateu
antes, pode não bater hoje. Acho que esse é o grande barato, não há uma opinião
imutável em nada que escrevo. Adoro discordar de mim mesmo. Por isso essa
‘crítica’ ou esse símbolo de opinião muitas vezes pode ser um tiro no pé de
quem escreve. Já me senti assim muitas vezes. Não gosto de pensar na crítica
musical como uma atividade profissional paga, pois pelo menos no Brasil, isso é
cada vez mais raro. E muitas vezes o ‘estagiário’ está nesse papel. Já sonhei
em ser ‘pago’ por um veículo para escrever sobre música, e de certo modo, por
quase uma década consegui estar nessa posição. Agora, como um outsider, sendo o
meu próprio editor, acabo sendo mais feliz, longe da sombra de um crivo sem
noção ou da permanente busca por acessos e o consequente sucesso. O crítico de
música está com os dias contados. O público de hoje prefere a piada, refuta a
reflexão, não quer mais pensar sobre a atividade artística. O mundo ao qual
conhecemos está morrendo, somos os últimos dinossauros nesse território,
escrevendo sobre nossas paixões e olhando para o céu, à espera do gigante
asteróide que irá acabar com tudo.
Excelente matéria...
ResponderExcluirMandaram muito bem os dois, entrevistador e entrevistado.
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