
A música negra vem acompanhada, desde o berço, da marca
do conflito entre as buscas do êxtase do divino e do transe carnal. Nos Estados
Unidos da primeira metade do século XX nada ilustra melhor tal cisão que a
divisão, presente desde sempre, entre o gospel e o blues. Dois mundos
inconciliáveis cuja fronteira jamais deveria ser ultrapassada, sob a pena de se
ter que lidar com acusações como as de "ter vendido a alma".
Mas se os negros americanos tiveram que lidar com a
rejeição e virulência de seus pares de fé ao cruzarem a linha do profano e
sagrado quando resolveram combinar a entrega mística do gospel ao prazer
despudorado do pop (fazendo nascer a soul music e o funk), os brothers e sisters de um outro continente fizeram
brotar uma nova e incendiária expressão musical a partir de uma união até então
inédita dessas vertentes, sem maiores grilos de consciência. Combinando os
cânticos da religião rastafari aos sedutores ritmos do ska e do rock steady, o
reggae surgiu no final da década de 1960 como um abalo sísmico nas convenções
da música pop.
Na verdade, talvez mais que qualquer outro gênero, o
reggae tem mostrado desde sua gênese que sua artilharia estava apoiada
exatamente na confluência excêntrica dessas duas fontes que eram à época, pelo
menos no campo ideológico, aparentemente inconciliáveis: o ascender divino dos
spirituals e o vigor rebelde próprio da juventude. Uma verve de inquietação
sempre esteve presente no gospel, é verdade. Mas ela era antes de não
conformidade e enfrentamento ao mundano (sempre no sentido de preservação de
pureza espiritual) que de contestação a sistemas de ordem social e política.
No reggae, o questionamento da ordem social é intrínseco.
Mas enquanto os olhos estão voltados para as injustiças e vilosidades permeadas
pelo mundo, o corpo e o espírito são elevados como que num clímax sobrenatural.
Décadas após seu nascimento, o gênero que não demorou a se popularizar até o
ponto de se transformar num fenômeno de alcance de massa, já é monumento.
Portanto, tentativas de "explicação" dessa história não se mostram
estranhas.
É justamente um tipo de revisão história o que o álbum
Soul of Jamaica tem a oferecer, só que de uma maneira particularmente singular.
Inna de Yard, o coletivo responsável pelo trabalho, é formado pelo encontro de
duas gerações distintas, que têm em comum o desejo de perpetuar os valores e fé
retratados em música, levando a bandeira adiante. De um lado, lendas musicais
jamaicanas como Cedric Myton, Winston McAnuff, Ken Boothe e Kiddus I. Do outro,
veteranos e novatos na cena como Judy Mowatt, Horace Andy, Jah9, Var, Derajah e
The Viceroys. O que temos aqui, portanto, é uma obra na qual a história é
revista tanto por quem a construiu, quanto por quem a constrói na
contemporaneidade. Todos juntos retrabalhado temas do repertório de cada um.
O resultado dessa união inigualável é a absoluta convergência
da alma jamaicana e raízes reggae numa música que traduz toda a leveza e poder
do gênero. O álbum, gravado em apenas 4 dias (!!!) ao ar livre nos topos dos
morros e quintais de Kingston (daí o nome do projeto), traz uma deliciosa
coleção de 13 músicas que não só é prato cheio para fãs do estilo, como também
pode se mostrar uma feliz porta de entrada para ouvintes novatos interessados.
O projeto deu tão certo que acabou ganhando um belo
documentário feito pelo cineasta Peter Webber. Em uma curta, mas produtiva
sessão que durou os quatro dias da gravação do disco, o diretor indicado ao
Oscar conseguiu capturar com rara e sensível perspectiva esta bela convergência
da cultura jamaicana.
Na verdade, é exatamente nessa despudorada liberdade e
naturalidade que reside o trunfo maior do trabalho. Var, um dos colaboradores
do projeto, com a palavra: "Não é como se você estivesse no estúdio, onde
você pode voltar e concertar as coisas. Você tem que cantar a canção direito. É
aí que mora a beleza da coisa, porque é uma performance ao vivo. Não é uma
coisa editada. Você apenas chega lá e canta, direto do seu coração".

Em tempos de entretenimento puro e simples, o trabalho
soa como uma lufada de frescor que só a verdadeira essência poderia
proporcionar. E o segredo para tal nos é revelado logo de saída na primeira
faixa, "Love is the Key", a cargo dos poderosos The Viceroys. Uma
manhã em Kingston, sol brilhando, pássaros cantando, cachorros latindo e uma
voz que sabiamente aconselha: "A sabedoria é livre, conhecimento e
compreensão também". Violões, baixo e percussão fazem a sedosa cama
instrumental sobre a qual desfilam os vocais que evocam o melhor da tradição do
canto jamaicano. Impossível não se emocionar.
A toada tocantemente espiritual transmuta de lânguida
para vigorosa na poderosa "Let the Water Run Dry", a faixa seguinte,
sob o comando do monstro Ken Boothe. A partir de "Slaving" até
"Youthman" com os ídolos e gênios Lloyd Parks e Cedric Myton,
respectivamente, o atrito musical leva à inevitável formação de chamas. Especialmente
neste último caso, chega a impressionar a grandiosidade da intensidade
espiritual que atinge. Entre as duas obras primas, os metais e backing vocals
femininas no poderoso número "Black to I Roots" (com o grande Kush
McAnuff).
"Crime" (Var) traz as coisas para dentro num
dos mais belos momentos do disco, trazendo também uma das maiores e mais
importantes reflexões, tão esquecida por nossos líderes nesses obscuros tempos
de pobreza e violência: "You can't solve crime if the poor man still can't
find no dime".
Em momentos como "Jah Power, Jah Glory" (Kiddus
I) e "Artibella" (Ken Boothe), a amplitude da riqueza da música
nativa se funde a sutis influências dos irmãos da costa latina. Já em uma
pedrada como "Sign of the Times" (Steve Newland), fica nítida a união
entre regional e universal no engendrar de um número não menos que incendiário.
Incendiária também é a performance de Lloyd Parks quando retrabalha "Money
For Jam", clássico de seu repertório, aqui presente em sua versão
definitiva, com toda a densidade, peso, fluidez e força. As impressivas
"Secret" (Winston McAnuff) e "Stone" (Derajah) aproximam-se
mais do formato tradicional da canção jamaicana em outros dos dois mais
marcantes momentos. O álbum remata com a beleza pungente "Thanks and
Praises" (Bo-Pee).
O que temos aqui, por fim, é um clímax que tem início já
nos primeiros sulcos e se estende por toda a extensão de uma obra não menos que
marcante. Clássico moderno.
Por Artur Barros
Parabéns, bem raro ver um critico dando sua opinião sobre um som incrivelmente inteligente como o reggae.
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