Uma crise de identidade: que
venha o monstro!
O heavy metal experimentou interpretações diferentes quando
começou a se disseminar globalmente. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que
a costa oeste da América do Norte, especialmente Los Angeles, a Baía da
California (Bay Area) e Seattle/Vancouver.
Em Los Angeles, muitas bandas
desenvolveram uma abordagem aerodinâmica com um som neutro e simplificado e um
foco na teatralidade e no espetáculo. Bandas como Poison, Mötley Crüe e Ratt lideravam o movimento afetuosamente (ou ironicamente, dependendo de sua
perspectiva) conhecido como “hair metal”. Para as hair bands, o espetáculo era
o produto. A encarnação mais comercialmente bem sucedida do metal, O hair rendeu bons momentos através de estruturas de canção simples com conteúdo
lírico com um foco aparentemente singular em carros rápidos, festas e boa vida. Musicalmente, estava muito mais relacionado com um hard rock leve e
comercial do que com o metal, embora tenha pego carona na sua popularização.
Indo para o norte, outras bandas embarcaram em um trajeto diametralmente
oposto ao movimento hair.
Inspirando-se nas bandas de metal originais e no aumento da intensidade dos
grupos da NWOBHM, um novo subgênero de metal veio ao mundo: o thrash metal. O termo “thrash
metal” foi usado pela primeira vez numa edição da revista Kerrang! pelo jornalista Malcolm Dome
enquanto fazia uma referência à canção "Metal Thrashing Mad", do Anthrax.
Moldando o estilo
O thrash nasceu principalmente do metal underground, onde os
clubes estavam suados e lotados, e ninguém se preocupou em manter registros
detalhados porque todos estavam geralmente desmaiados bêbados no chão. O que
sabemos com certeza é que, em 1981, uma banda de Newcastle chamada Venom lançou seu álbum de estreia,
Welcome to Hell, na mesma época em que o grupo de Nova York Overkill gravou uma canção chamada "Unleash the
Beast" e a banda de Los Angeles Leather Charm escreveu
uma canção intitulada "Hit the Lights". Todas as três gravações caracterizam
uma riffagem de alta velocidade com um padrão
de bateria frenético – os dois elementos essenciais do que veio a ser conhecido
como thrash metal.
O som básico do thrash metal evoluiu de
combinar esta batida crucial de bateria (roubada da cena do punk) com o jogo
técnico da NWOBHM de bandas como o Iron Maiden e os tempos rápidos do Motörhead, Venom, Overkill e Leather Charm (junto com uma série de outras bandas).
O vocalista do Leather Charm, James
Hetfield, logo dispensou sua banda e se conectou com um baterista chamado Lars
Ulrich para formar o Metallica,
lançando duas fitas cassete demo em 1982 - ambas foram abraçadas pelo metal
underground. A precisão temerosa da dedilhada de Hetfield e a velocidade de
suas canções impressionaram um grupo inteiro de músicos nos Estados Unidos e em
outros lugares, que – também estimulados pela música cada vez mais rápida do Venom – começaram a formar suas
próprias bandas de thrash metal.
Conduzido pelas bandas da Bay Area como Metallica, Exodus e Testament, assim como o Slayer e o Megadeth, na Califórnia, o Metal Church de Seattle e o Annihilator, que vinha de
Vancouver, as bandas thrash consideraram o NWOBHM como um desafio aberto que
culminou em uma corrida armamentista de metais pesados: mais difícil, mais
rápido, mais alto. O thrash era a encarnação mais extrema de heavy metal até à
data.
O thrash metal é caracterizado por suas
guitarras agressivas, rápidas, pedais duplos de bateria, guitarras com a
afinação baixa, e muitas vezes vocais rasgados. Os vocais variam de gritos
rasgados à harmônicos, mas em grande parte são compreensíveis, apesar de sua
intensidade. Musicalmente mais rítmico do que melódico, sua principal
preocupação era com riffs complexos tocados a uma velocidade vertiginosa, e cuja origem pioneira vem de nomes como James Hetfield do Metallica, Dave Mustaine do Megadeth e a dupla do Slayer, Kerry King e
Jeff Hanneman. As bandas de thrash desafiaram a norma e expressaram abertamente
sua fúria e descontentamento através de letras socialmente conscientes e
politicamente críticas. No final da década de 1980, o metal pesado estava se
tornando esquizofrênico, desenvolvendo-se em duas direções convergentes, com
cada uma empurrando para os extremos.
O ano zero do thrash
Para muitos, 1983 foi o real ano zero do thrash, não
obstante os esforços primitivos dos primeiros grupos do estilo. O Metallica (que havia se mudado de Los
Angeles para San Francisco no ano anterior para fugir da cena hair metal de sua
cidade natal) lançou seu álbum de estreia, Kill ‘Em All,
seguido de perto por Slayer, que
desencadeou o temível Show No Mercy no
mesmo ano. No outro lado do país o Anthrax lançou Fistful of Metal em janeiro de 1984,
em torno do mesmo tempo que o supracitado gênio na mídia inventou o termo
‘thrash metal’ e usou-o em uma crítica.
1985 foi um bom ano para os fãs de guitarra, já que a cena do
thrash recebeu um impulso intenso com o lançamento de Killing is My Business … and Business is Good!, o
álbum de estreia do Megadeth.
Ao ouvir a complexidade e a velocidade das músicas – compostas pelo vocalista
virtuoso de Megadeth,
Dave Mustaine, furioso por ter sido despedido do Metallica dois anos antes – as outras
bandas perceberam que teriam que intensificar seu jogo se fossem competir nesta
zona mais difícil do thrash, onde riffs complexos ditavam as regras.
Em 1986, uma clara linha de frente das bandas tinha se
estabelecido muito acima de seus concorrentes com imensa compostura e
habilidades técnicas, qualidade de produção, uma vontade de fazer turnês até
cair e uma sede de sangue para riffs de velocidade. Metallica e Megadeth estavam pescoço a pescoço quando
se tratava de destreza na guitarra, com Hetfield e seu colega guitarrista Kirk
Hammett rivalizando com Mustaine.
"Depois de ser demitido do Metallica eu queria
sangue, eu queria ser mais rápido e mais pesado que eles.”
Dave Mustaine
Anthrax e Slayer, por outro lado, estavam muito mais
focados na velocidade intensa e agressividade, embora as duas bandas logo
divergissem – o Anthrax em
direção a uma abordagem de hinos e de um “skatethrash” e o Slayer espiralando
para baixo em um som mais escuro, mais brutal, atado a imagens e letras
satânicas.
Muito além do Big Four
Entre 1986 e 1987, a cena da velha guarda do thrash atingiu seu
auge, com cada um dos Big Four lançando
álbuns que redefiniram a face do metal. Master of Puppets do Metallica fundiu músicas épicas e
multi-camadas com uma grande produção, Reign in Blood do Slayer era um álbum colossal cheio de
maldade, o Anthrax produziu
o soberbo Among the Living,
provando que a composição de multidões poderia coexistir com breakdowns e
melodias rápidas, e o Megadeth desencadeou
sua raiva com o frenético Peace Sells … But Who’s Buying?,
em que Mustaine lutou com seus demônios e saiu mais ou menos no topo.
Nesse ponto, uma segunda divisão eminentemente digna de bandas
de thrash metal tinha surgido, encorajado pelo desejo cínico das gravadoras de
fazer um dinheirinho rápido na esteira do sucesso do Big Four. A América do
Norte (especificamente a área da baía de San Francisco) conduziu a leva com os
citados Annihilator, Exodus e Testament, mas também com Dark Angel, Forbidden, Vio-lence, Sadus, Heathen, Nuclear Assault, Exciter, Whiplash, Flotsam and Jetsam, Hirax,
Voivod e Death Angel. O
Brasil produziu o Sepultura e
o Reino Unido forneceu Onslaught e Sabbat, enquanto Celtic Frost e Coroner vieram dos improváveis
arredores da Suíça.
Enquanto isso, a Alemanha tinha sua própria trindade ímpia do
thrash com Kreator, Sodom e Destruction. Hoje, os alemães são
citados pelo seu próprio Big Four, com a adição do Tankard. O thrash teutônico se
originou na Alemanha, Áustria e Suíça no início da década de 1980, influenciado
pelo NWOBHM e pelo thrash da Bay Area. É um thrash com vocais mais rasgados e baterias
de bumbos mais rápidos.
Dezenas de outros thrashers saturaram
a cena, muitos dos quais desapareceram sem deixar vestígios.
A bagunça dos anos 1990 e o renascimento
Pelo começo da década de 1990 pareceu que os dias estavam contados para o
thrash metal. A nova cena do death metal estava achando o caminho na
Flórida e na Suécia, levando níveis de velocidade e malícia a tais extremos que
as melodias thrash de anos anteriores pareciam diminutas em comparação. A cena
black metal na Noruega, com suas obsessões demoníacas,
fez o thrash parecer um pouco ingênuo também. E graças a um trio sujo de
Seattle chamado Nirvana, a enorme maré do grunge estava pronta para aterrissar
diretamente nas listas de álbuns em todo o mundo, redesenhando o mapa para a
música “pesada” e condenando todos, exceto os mais dedicados músicos de metal.
"Em 1991, todos nós estávamos cantando "Smells Like Teen Spirit" e o thrash metal era tão anos 1980, cara. Parecia que o
thrash nunca se recuperaria.”
James Hetfield
Em última análise, o Big Four sobreviveu à onda do grunge graças à lealdade da base de fãs. Claro, o Metallica não precisava se preocupar com
nada tão finito quanto o grunge: seu lendário Black Album (1991)
vendeu milhões de cópias. Mas, ao dar um salto tão comercial, o Metallica
abandonou suas raízes de thrash metal para um som mais “MTV”, um movimento que
muitos de seus fãs ainda sofrem até hoje.
O Slayer também
sobreviveu através de aderência resoluta às suas armas, consolidando sua
velocidade e violência sônica e confiando em seus fãs.
"Nós sempre soubemos que nenhuma banda thrash
era melhor do que nós, então continuamos fazendo a nossa coisa.”
Kerry King
Essa postura admirável os levou para além do hiato temporário na
popularidade do thrash metal e até hoje.
No entanto, foi quase uma história diferente para Megadeth e Anthrax, ambos os quais chegaram perto da
extinção comercial na era do rock alternativo e nu metal. Apesar do Megadeth ter saltado para os anos '990 com o
imenso Rust in Peace,
Dave Mustaine atraiu críticas consideráveis ao longo da década com uma série
de álbuns que queriam tanto ser “veiculáveis” que eram quase dolorosos demais
para ouvir.
O Anthrax,
por sua vez, sofreu com line-ups quase fatais e também tentou um movimento em
território mais comercial, decepcionando seus fãs e só realmente reemergindo da
relativa obscuridade no novo milênio.
Felizmente para o Big Four, o som do thrash metal foi abraçado
nos anos 1990 por várias bandas novas que atualizaram seu modelo básico com
elementos como o tom de guitarra ‘scooped’ e down tuning, para evoluir o que
ficou conhecido como a cena do post-thrash.
As duas bandas mais responsáveis por manter o
thrash no olho público durante os anos 1990 foram Machine Head e Pantera, que incluíram
avarias rápidas e mudanças abruptas de tempo em suas músicas, assim como o Big
Four fez nos anos 1980.
No começo dos anos 2000, Destruction e Kreator tentaram demonstrar que o gênero
estava vivo lançando os magníficos The Antichrist e Violent Revolution, respectivamente. Exodus, Testament, Overkill e
outras mais que também resistiram aos anos 1990 também lançaram ótimos trabalhos
nesse período, marcando o renascimento de um subgênero que passou quase uma
década, salvo raras exceções, sem ter muito do que se orgulhar.
O gênero passou a respirar e os gigantes foram sustentados pela
nova safra, com bandas como Havok, Suicidal Angels, Woslom, Vektor, Legion of the Damned, Violator, Lost Society, Gamma Bomb, Hatriot, Crisix, Angelus
Apatrida, Ultra Violence, Mortyr, Hatchet e Fueled By Fire.
Após a prova de fogo, o Slayer continuou seu bom
papel com Repentless, o Megadeth lançou seu melhor
disco em anos com Dystopia, o Anthrax, de pazes feitas
com o vocalista Joey Belladonna, vem lançando bons discos em sequência, assim
como o Testament. Hoje, graças a
todos esses fatores citados, o thrash é um dos subgêneros mais representativos
do metal, possuindo fãs fieis, bandas no auge de suas carreiras e grandes
trabalhos sendo lançados.
Ouça uma playlist especial sobre o terceiro
capítulo da série:
Fontes:
Burroughs, William S. Nova
Express. New York: Grove Press, 1964. ISBN 0802133304
Dunn, Sam. Metal: A Headbanger’s Journey (Warner Home Video 2006).
Mciver, Joel. Ahistory of thrash metal. (Music Radar, 2010).
Reis, Fábio. Thrash Metal: Uma Breve Retrospectiva do Gênero.
Toresen, Jack. The Evolution of Thrash Metal. (Metal Wani, 2017)
Walser, Robert. (1993). Running with the Devil: Power, Gender, and Madness in Heavy Metal Music. Wesleyan University Press. ISBN 0819562602
Weinstein, Deena. (1991). Heavy Metal: A Cultural Sociology. Lexington. ISBN 0669218375
Weinstein, Deena. Heavy Metal: The Music and its Culture. (New York: DaCapo, 2000). ISBN 0306809702
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