Discoteca Básica Bizz #188: Ira! - Psicoacústica (1988)


O terceiro disco do Ira! já foi chamado de tudo: maldito, visionário, ousado, suicida. A começar pela decisão do quarteto de abdicar de um produtor para o trabalho. Apenas os integrantes e o engenheiro de som português (que viraria um mega produtor no futuro) Paulo Junqueiro seriam suficientes - nenhum grupo de rock nacional nascido nos anos 1980 havia feito proposta semelhante às suas gravadoras.

A criação de "Farto do Rock 'n' Roll" dá uma ideia do clima reinante durante as gravações no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro. O baixista Gaspa chegou com um tema pesadíssimo. A música ficou pronta, mas a letra não saía. Então, o guitarrista Edgard Scandurra apareceu com os versos que falavam de "outros sons, outras batidas, outras pulsações" e agrediam o rock de uma maneira inteligentíssima. Nasi não quis cantar aquilo, por julgar ofensivo demais. Pediu para Edgard assumir a bronca, mas não se furtou a demonstrar seus dotes de DJ fazendo scratches na canção, enquanto o baterista André Jung introduzia batuques de samba. Mais tarde, o guitarrista confessaria que sua intenção era dar um toque em Nasi e André, envolvidos até o talo com a produção hip-hop da época.

Concluído, o trabalho não deixava dúvidas quanto aos méritos. Os problemas ao redor da obra, no entanto, foram vários. Primeiro: a gravadora não conseguiu achar uma música de trabalho. As faixas eram compridas e consideradas difíceis. A reflexiva "Pegue Essa Arma” foi a encarregada de puxar o disco e já determinou seu fracasso - apenas 50 mil cópias vendidas, 200 mil a menos que o antecessor Vivendo e Não Aprendendo (1986).


Segundo: o single seguinte foi o proto-reggae "Receita Para Se Fazer Um Herói", cuja letra fora fornecida por um ex-colega de exército de Scandurra, o soldado Esteves. Ele saiu nos créditos, mas cismou de pedir uma grana absurda pela autoria, sob a ameaça de embargar a obra. Paralelamente, uma leitora de Bizz acusava o Ira! de plágio, pois tinha lido a letra de "Receita Para Se Fazer Um Herói" em um livro de história. O rolo fenomenal só terminou quando a viúva do escritor português Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira, o verdadeiro dono do poema, foi encontrada.

Terceiro: usar sampler não era algo comum nos idos de 1980, o que levou Nasi a procurar o cineasta Rogério Sganzerla para a liberação das frases de seu filme de estreia (O Bandido da Luz Vermelha, de 1968) para as faixas "Rubro Zorro” e "Pegue Essa Arma”. O diretor concordou, contanto que fosse chamado para dirigir um clipe para a banda. A gravadora topou, Sganzerla pediu muito dinheiro, a gravadora deu para trás, Sganzerla passou a ligar para Nasi de madrugada ameaçando embargar a obra (mais um!).

Apesar de reunir rocks sublimes como "Poder, Sorriso, Fama” e "Manhãs de Domingo", nos quais o guitarrista abusava de camadas, efeitos e recursos de produção da época, Psicoacústica chocava o ouvinte pela ruptura com o passado recente do Ira!. ''Advogado do Diabo", um rap sobre base de pandeiro, foi fundamental para o surgimento do mangue beat. Chico Science era tão maluco pela música que chegou a incluí-la no repertório da Nação Zumbi.

Por ter antecipado tendências e reunir as melhores canções adultas da banda, o disco manteve seu frescor por todos esses anos. Jogou o Ira! no ostracismo, mas isso é só um porém. Nasi confirma: "Faríamos tudo de novo, nunca achamos que tínhamos dado uma bola fora".

Texto escrito por José Flávio Júnior e publicado na Bizz #188, de março de 2001

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