O terceiro disco do Ira! já foi chamado de tudo: maldito, visionário, ousado, suicida. A começar pela decisão do quarteto de abdicar de um produtor para o trabalho. Apenas os integrantes e o engenheiro de som português (que viraria um mega produtor no futuro) Paulo Junqueiro seriam suficientes - nenhum grupo de rock nacional nascido nos anos 1980 havia feito proposta semelhante às suas gravadoras.
A criação de "Farto do Rock 'n' Roll" dá uma
ideia do clima reinante durante as gravações no estúdio Nas Nuvens, no Rio de
Janeiro. O baixista Gaspa chegou com um tema pesadíssimo. A música ficou
pronta, mas a letra não saía. Então, o guitarrista Edgard Scandurra apareceu
com os versos que falavam de "outros sons, outras batidas, outras
pulsações" e agrediam o rock de uma maneira inteligentíssima. Nasi não
quis cantar aquilo, por julgar ofensivo demais. Pediu para Edgard assumir a
bronca, mas não se furtou a demonstrar seus dotes de DJ fazendo scratches na
canção, enquanto o baterista André Jung introduzia batuques de samba. Mais
tarde, o guitarrista confessaria que sua intenção era dar um toque em Nasi e
André, envolvidos até o talo com a produção hip-hop da época.
Concluído, o trabalho não deixava dúvidas quanto aos
méritos. Os problemas ao redor da obra, no entanto, foram vários. Primeiro: a
gravadora não conseguiu achar uma música de trabalho. As faixas eram compridas
e consideradas difíceis. A reflexiva "Pegue Essa Arma” foi a encarregada
de puxar o disco e já determinou seu fracasso - apenas 50 mil cópias vendidas,
200 mil a menos que o antecessor Vivendo e Não Aprendendo (1986).
Segundo: o single seguinte foi o proto-reggae
"Receita Para Se Fazer Um Herói", cuja letra fora fornecida por um
ex-colega de exército de Scandurra, o soldado Esteves. Ele saiu nos créditos,
mas cismou de pedir uma grana absurda pela autoria, sob a ameaça de embargar a
obra. Paralelamente, uma leitora de Bizz acusava o Ira! de plágio,
pois tinha lido a letra de "Receita Para Se Fazer Um Herói" em um
livro de história. O rolo fenomenal só terminou quando a viúva do escritor
português Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira, o verdadeiro dono do
poema, foi encontrada.
Terceiro: usar sampler não era algo comum nos idos de 1980,
o que levou Nasi a procurar o cineasta Rogério Sganzerla para a liberação das
frases de seu filme de estreia (O Bandido da Luz Vermelha, de 1968) para as faixas
"Rubro Zorro” e "Pegue Essa Arma”. O diretor concordou, contanto que
fosse chamado para dirigir um clipe para a banda. A gravadora topou, Sganzerla
pediu muito dinheiro, a gravadora deu para trás, Sganzerla passou a ligar para
Nasi de madrugada ameaçando embargar a obra (mais um!).
Apesar de reunir rocks sublimes como "Poder, Sorriso, Fama” e "Manhãs de Domingo", nos quais o guitarrista abusava de camadas, efeitos e recursos de produção da época, Psicoacústica chocava o ouvinte pela ruptura com o passado recente do Ira!. ''Advogado do Diabo", um rap sobre base de pandeiro, foi fundamental para o surgimento do mangue beat. Chico Science era tão maluco pela música que chegou a incluí-la no repertório da Nação Zumbi.
Por ter antecipado tendências e reunir as melhores
canções adultas da banda, o disco manteve seu frescor por todos esses anos.
Jogou o Ira! no ostracismo, mas isso é só um porém. Nasi confirma: "Faríamos
tudo de novo, nunca achamos que tínhamos dado uma bola fora".
Texto escrito por José Flávio Júnior e publicado na Bizz #188,
de março de 2001
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