Discoteca Básica Bizz #189: David Bowie - Hunky Dory (1971)



Não era exatamente como divindade pop que aquele suburbano magrelo, ex-mímico, ex-mod, com três álbuns incoerentes no currículo, era tratado em Londres. Aos 24 anos, David Bowie já ensaiara passos como cantor/compositor hippie e tentara ser o que os ingleses chamam de music hall entertainer (uma coisa meio Ivon Curi).

No começo daquele 1971 havia lançado um disco de rock pesado, The Man Who Sold the World, aparecendo na capa metido em um vestidinho. De escassa repercussão, o trabalho despertou a atenção de um empresário canalha americano, Tony DeFries. Embarcado para os Estados Unidos, Bowie trocou figurinhas com Lou Reed e Andy Warhol. Começava o plano marqueteiro que o estouraria em 1972, impulsionado pelo rock and roll energético de Ziggy Stardust. A incipiente revolução glam já estava em curso, mas o futuro astro demorou um disco para cair dentro musicalmente.

Esse disco foi Hunky Dory. A partir dele, Bowie deixou de ser uma nebulosa promessa. Logo na abertura, "Changes", inspirada pela gravidez da então esposa Angie, assumia sua natureza mutante e avisava: "Essas crianças em quem vocês cospem / Enquanto tentam mudar seus mundos / São imunes aos seus consolos / Eles sabem muito bem o processo pelo qual estão passando". O arranjo, porém, era típico de café-teatro, baseado no piano de Rick Wakeman (do Yes) e com mudanças de direção na estrutura harmônica a perseguir aquele truque Cole Porter de traduzir a letra em música.

Em seguida, mais uma adorável frescura pianística. "Oh! You Pretty Things", saudava a chegada do filho Zowie misturando conceitos maluco beleza nietzschianos ("Abram alas para o Homo Superior"). Terminava com mais um alerta: "Todos os estranhos chegaram hoje / E parece que estão aqui para ficar".


Muito além da simples exaltação da nova raça andrógina e extravagante mencionada em "Kooks" - outro vaudeville coruja em homenagem ao pequeno Zowie -, as mensagens pegavam em cheio a garotada que crescia viciada em TV e sexualmente confusa diante de tantas portas abertas pelos anos 1960. Meninos e meninas capazes de entender o zapping da balada "Life on Mars?". Nessa obra-prima bastarda ("Inspirada por Frankie", informa a contracapa - no caso, "Frankie" Sinatra e sua versão de "My Way"), papai, mamãe, Mickey Mouse, Lennon "à venda de novo", a "Amerika", a decadente Inglaterra, sonhos de celulóide, tudo é triturado no coração de uma adolescente. E transformado em beleza pelas cordas arranjadas por Mick Ronson (1946-1993), guitarrista que passaria à eternidade como o adorável presepeiro a escudar Ziggy.

Na categoria grandes imitações, Bowie incluiu três recados para lá de ambíguos. "Andy Warhol", um pseudo flamenco, mais sacaneia do que homenageia (''Andy tira uma soneca", ''Andy pensa em tinta e cola, mas que coisa legal mais chata!"). "Song For Bob Dylan" dirige-se ao bardo como se ele fosse um super-herói ("Dê-nos de volta nossa unidade / Não nos deixe com a sanidade deles"), não sem certa ironia. "Queen Bitch", talvez o único rock and roll do álbum, é paródia assumida do Velvet Underground, com vocais falados à Lou Reed e letra sobre uma bicha má que rouba o "amigo" do narrador.

Para fechar, uma pitada de originalidade, "The Bewlay Brothers". Por trás da letra críptica, impenetrável, repleta de referências à convivência com Terry (o irmão esquizofrênico de Bowie que se matou), o pathos da grande arte. Como algumas das melhores coisas da vida, você não entende, mas sente.

Em Hunky Dory, se fez farejar pelo mundo o genial diluidor que há três décadas dá as cartas na música pop. A partir de ideias alheias, sim, mas e daí?

Texto escrito por Pedro Só e publicado na Bizz #189, de abril de 2001


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