
Não era exatamente como divindade pop que aquele
suburbano magrelo, ex-mímico, ex-mod, com três álbuns incoerentes no currículo,
era tratado em Londres. Aos 24 anos, David Bowie já ensaiara passos como
cantor/compositor hippie e tentara ser o que os ingleses chamam de music
hall entertainer (uma coisa meio Ivon Curi).
No começo daquele 1971 havia lançado um disco de rock
pesado, The Man Who Sold the World, aparecendo na capa metido em um
vestidinho. De escassa repercussão, o trabalho despertou a atenção de um
empresário canalha americano, Tony DeFries. Embarcado para os Estados Unidos,
Bowie trocou figurinhas com Lou Reed e Andy Warhol. Começava o plano
marqueteiro que o estouraria em 1972, impulsionado pelo rock and roll energético
de Ziggy Stardust. A incipiente revolução glam já estava em curso, mas o
futuro astro demorou um disco para cair dentro musicalmente.
Esse disco foi Hunky Dory. A partir dele, Bowie
deixou de ser uma nebulosa promessa. Logo na abertura, "Changes",
inspirada pela gravidez da então esposa Angie, assumia sua natureza mutante e
avisava: "Essas crianças em quem vocês cospem / Enquanto tentam mudar seus
mundos / São imunes aos seus consolos / Eles sabem muito bem o processo pelo
qual estão passando". O arranjo, porém, era típico de café-teatro, baseado
no piano de Rick Wakeman (do Yes) e com mudanças de direção na estrutura
harmônica a perseguir aquele truque Cole Porter de traduzir a letra em música.
Em seguida, mais uma adorável frescura pianística.
"Oh! You Pretty Things", saudava a chegada do filho Zowie misturando
conceitos maluco beleza nietzschianos ("Abram alas para o Homo
Superior"). Terminava com mais um alerta: "Todos os estranhos
chegaram hoje / E parece que estão aqui para ficar".

Muito além da simples exaltação da nova raça andrógina e
extravagante mencionada em "Kooks" - outro vaudeville coruja
em homenagem ao pequeno Zowie -, as mensagens pegavam em cheio a garotada que
crescia viciada em TV e sexualmente confusa diante de tantas portas abertas
pelos anos 1960. Meninos e meninas capazes de entender o zapping da balada
"Life on Mars?". Nessa obra-prima bastarda ("Inspirada por
Frankie", informa a contracapa - no caso, "Frankie" Sinatra e
sua versão de "My Way"), papai, mamãe, Mickey Mouse, Lennon "à
venda de novo", a "Amerika", a decadente Inglaterra, sonhos de
celulóide, tudo é triturado no coração de uma adolescente. E transformado em
beleza pelas cordas arranjadas por Mick Ronson (1946-1993), guitarrista que
passaria à eternidade como o adorável presepeiro a escudar Ziggy.
Na categoria grandes imitações, Bowie incluiu três
recados para lá de ambíguos. "Andy Warhol", um pseudo flamenco, mais
sacaneia do que homenageia (''Andy tira uma soneca", ''Andy pensa em tinta
e cola, mas que coisa legal mais chata!"). "Song For Bob Dylan"
dirige-se ao bardo como se ele fosse um super-herói ("Dê-nos de volta
nossa unidade / Não nos deixe com a sanidade deles"), não sem certa
ironia. "Queen Bitch", talvez o único rock and roll do álbum, é paródia
assumida do Velvet Underground, com vocais falados à Lou Reed e letra sobre uma
bicha má que rouba o "amigo" do narrador.
Para fechar, uma pitada de originalidade, "The
Bewlay Brothers". Por trás da letra críptica, impenetrável, repleta de
referências à convivência com Terry (o irmão esquizofrênico de Bowie que se
matou), o pathos da grande arte. Como algumas das melhores coisas da
vida, você não entende, mas sente.
Em Hunky Dory, se fez farejar pelo mundo o genial
diluidor que há três décadas dá as cartas na música pop. A partir de ideias alheias,
sim, mas e daí?
Texto escrito por Pedro Só e publicado na Bizz #189, de
abril de 2001
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