
Construção representa um foco múltiplo de inflexão
na carreira de Chico Buarque. O ano é 1971 e Chico tinha acabado de passar por
um perrengue sério com a censura meses antes com a proibição de "Apesar
de Você", canção lançada em compacto que, depois de vender 100 mil cópias,
foi recolhido. A música, um samba animado e esperançoso, era um exemplo típico
de sua habilidade de fazer canções com alto teor político mas sem o
panfletarismo que estava associado ao gênero de protesto nos festivais.
A obra de Chico durante todos os anos 1970 seria
marcada pela infatigável perseguição da censura e pela quase que equivalente
habilidade crescente em driblá-la. Foi uma década de intensa experimentação
estilística, em que Chico cunhou uma expressão ao mesmo tempo tributária da
tradição, mas de uma coragem autoral ímpar.
Construção representa uma espécie de balão de ensaio de todos esses vetores. Para começo de conversa, Chico está com raiva - e essa raiva emerge em quase todas as faixas. É irônica e quase metafísica em "Deus lhe Pague", espécie de oração às avessas em que o narrador agradece "mais um dia, agonia, pra suportar e assistir / pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir / e pelo grito demente que nos ajuda a fugir". É mais pedestre e direta em "Cotidiano" ("Toda noite ela diz pra eu não me afastar / Meia-noite ela jura eterno amor / E me aperta pra eu quase sufocar! / E me morde com a boca de pavor").

Depois, ele afia os instrumentos para sofisticar o
"protesto". A faixa que dá nome ao disco é quase sociológica - narra
a morte de um operário da construção civil, coisa corriqueira nos anos 1970 pelas
péssimas condições de trabalho e pela velocidade com que se mudava a cara das
cidades brasileiras -, mas, ao mesmo tempo, de um rigor poético incrível.
Construída a partir de versos que acabam em palavras proparoxítonas, que se
intercambiam como tijolos, a descrição tem a exatidão do engenheiro e o drama
de um observador angustiado com o Brasil.
Nas parcerias com Vinícius de Moraes o lirismo reaparece,
menos ingênuo do que nos tempos de "A Banda" e com tom sexual
acentuado como em "Olha Maria", em que o amante observa a mulher
indo embora ainda com os olhos de desejo, e em "Valsinha", que narra
o reacender de uma paixão adormecida. A capacidade de trazer para as letras os
estados emocionais complexos da paixão amorosa também era uma de suas forças
criativas.
Rigoroso na forma, Construção é, ao mesmo
tempo, um libelo (sem militância rasteira) de como a música pode ser um alento
em tempos difíceis.
Texto escrito por Bia Abramo e publicado na Bizz #197, de
janeiro de 2006
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