Quadrinhos: Nada a Perder, de Jeff Lemire (2019, Nemo)


O quadrinista canadense Jeff Lemire possui algumas características marcantes em suas obras. Dramas familiares passados em cidades interioranas com paisagens bucólicas estão entre elas. Esse é o pano de fundo de Black Hammer Gideon Falls, duas de suas obras recentes mais celebradas, e também de Nada a Perder, quadrinho publicado no Brasil pela editora Nemo em 2018 e que acaba de ganhar sua primeira reimpressão.

Em Nada a Perder conhecemos um ex-jogador de hóquei que tinha tudo para se transformar em uma estrela do esporte, mas que acabou não alcançando todo o seu potencial devido a alguns problemas pelo caminho. Ao invés disso, Derek Ouelette, o personagem central da obra, é apenas um cara fracassado que sobrevive como pode em uma minúscula cidade do interior gelado do Canadá. E, enquanto faz isso, bebe litros de álcool e arruma confusão com praticamente todo mundo. As coisas mudam de figura quando sua irmã retorna após muitos anos fora e traz junto consigo problemas que levam Derek a encarar as suas próprias questões.

Lemire conta essa história de maneira exemplar. O texto é muito bem escrito e prende o leitor, enquanto a narrativa gráfica mostra o domínio do autor também sobre a arte. Ao contrário de Black Hammer e Gideon Falls, produzidas ao lado dos ilustradores Dean Ormston e Andrea Sorrentino respectivamente, em Nada a Perder Lemire faz tudo, do roteiro à colorização em aquarela. Sua arte é impressionista e dona de um estilo bastante peculiar, que casa de forma perfeita com o que está sendo contato.



A narrativa usa a cor como elemento de localização temporal e espelho do estado de espírito dos personagens. Na maior parte de suas 272 páginas, Nada a Perder traz apenas três cores: branco, preto e tons de azul. Isso faz com que o ambiente gélido onde a história se passa também seja sentido pelo leitor, em um resultado que entrega páginas muito bonitas artisticamente. Todo o tempo presente dos personagens apresenta essa estética, mostrando o quanto eles estão congelados dentro de suas próprias vidas e presos em questões que ainda não conseguiram resolver. Os curtos e frequentes flashbacks, fundamentais para tornar os personagens ainda mais profundos e complexos, vem sempre com uma paleta de cores muito mais variada, exemplificando como a vida era bela e acontecia em sua plenitude no passado, em contraste com o pesadelo que o presente se tornou.

Todo esse processo leva a um crescendo constante, com o quadrinho tendo um ritmo empolgante e revelando-se, ao mesmo tempo, uma história de ação e uma busca pela verdadeira essência do protagonista. O clímax, onde Derek encontra a redenção, é contado por Lemire com extrema sensibilidade, em contraste com a explosão que ocorre na parte gráfica no mesmo momento.

Nada a Perder é mais um belo trabalho desse autor e ilustrador canadense, um título que foge totalmente da esfera super-heróica e fantasiosa dos quadrinhos e constrói uma trama muito mais alinhada com o público adulto e até mesmo com a literatura.

A edição da Nemo vem no formato 23,8x17,2 centímetros, 272 páginas, capa com orelha e lombada quadrada, seguindo o padrão adotado pela editora em seus quadrinhos.

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