Apenas o costumeiro senso de humor do tempo pode explicar
como um trabalho urdido em clima de tensão e confronto encontrou seu destino
como um louvor à concórdia e à harmonia. E tão poderoso foi esse louvor, tão
exato para os tempos fraturados de então, que Bridge Over Troubled Water tornou-se
o maior sucesso comercial de Paul Simon como compositor e de Simon e Art
Garfunkel como intérpretes. O maior e o último.
Criado ao longo de dois anos - ou 800 horas, pelas contas
de Simon -, nos intervalos entre apresentações na TV, shows e as filmagens
de Ardil 22 (1970), estreia de Garfunkel como ator, o disco representa várias
encruzilhadas pessoais e artísticas para a dupla. Quinto álbum da carreira,
vinha imediatamente depois daquele que, até o momento, era sua obra-prima, à
medida que estabelecia o padrão de excelência do novo folk: Bookends, de
1968.
Com o estilo momentaneamente exaurido e dinamitado por
Bob Dylan, Simon, especialmente, sentia necessidade de buscar novos idiomas e
horizontes. Garfunkel, o tenor perfeito que encarnava a metade etérea da dupla,
havia encontrado no cinema a saída para essa inquietação.
Simon começou sua jornada recuperando seus próprios passos,
do doo-wop da adolescência ("Bye Bye Love", dos Everly Brothers) e
indo em qualquer direção, permitindo-se criar um reggae bem-humorado composto
por acaso ("Cecilia"), letrar uma canção instrumental ouvida num
álbum do peruano Los Incas ("El Condor Pasa") e fazer arranjos
complexos como o de "The Boxer", cinco minutos de narrativa
misteriosa que, no fim das contas, volta ao começo - ao próprio Simon.
No meio do caminho, e após uma longa pausa, quase como um
P.S., estão os dois momentos mais íntimos e confessionais do disco: "The
Only Living Boy in New York" (que Simon sempre disse ser sua faixa
favorita) e "Song for the Asking", que soa cada vez mais, a cada
ouvida, como um adeus.
O abre-alas e o coração do álbum, contudo, é sua
faixa-título. Inspirada no trabalho do Reverendo Claude Jeter e seu coral
gospel Swan Silvertones - cujo hino "Oh Mary Don't You Weep For Me"
tinha o verso "serei sua ponte sobre as águas profundas se confiares em
mim", "Bridge Over Troubled Water" foi composta de uma assentada
só quando Paul e Art passavam férias de verão com suas famílias em Los Angeles,
numa casa alugada no mesmo Blue Jay Way que George Harrison havia cantado.
Simon queria gravá-la sozinho, mas o tom era
impossivelmente alto para sua voz. Com alguma relutância, Simon e o arranjador
Larry Knechtel refizeram a partitura para Art Garfunkel, que sugeriu a inclusão
de um terceiro verso para dar à canção "a imponência de um hino
profano". Com o terceiro verso – "sail on silver girl" -, um
arranjo épico e místico e a voz de Garfunkel atingindo alturas insuspeitadas ("Fiquei
espantado com a coragem dele aventurar-se assim com sua garganta", Simon
contaria à Rolling Stone muitos anos depois), o single com
"Bridge Over Troubled Water" tornou-se um dos maiores sucessos de
1970, ganhando o Disco de Ouro e empurrando o álbum por caminho idêntico.
Os tempos eram, de fato, profundas águas revoltas, a
euforia dos 1960 se esvaindo numa ressaca cósmica, a guerra do Vietnã em ritmo de
escalada, certezas derrubadas sem o conforto imediato de novas possibilidades.
Garfunkel soava exatamente como um anjo terreno, oferecendo a solidez precária,
mas doce, de uma canção.
Texto escrito por Ana Maria Bahiana e publicado na Bizz #201,
de maio de 2006
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