Osamu Tezuka, o “Walt Disney Japonês”, como foi carinhosamente apelidado pelos seus fãs mais fiéis, é claramente associado como um dos grandes responsáveis pela chamada “revolução do mangá” e considerado hoje um dos mestres da nona arte. Para leitores mais assíduos de obras adultas, temas sobre guerras, traumas psicológicos, política, sexo e poder são carimbos sempre mencionados. Ayako não é uma obra biográfica, mas relata todos estes aspectos tendo como cenário o mundo num período de profunda depressão e medo.
Tezuka não
começou sua carreira com obras voltadas para adultos, seguindo um rumo contra a
resistência do gekiga (mangás adultos). Sua intenção era criar mangás para o
público infantil. E com este caminho em mente apresentou ao mundo obras como
Kimba e Astro Boy, este talvez seu trabalho mais lembrado.
Antes de falarmos
sobre Ayako precisamos mencionar que esta obra só é o que é pelo simples e
pavoroso fato de Tezuka, ainda um jovem estudante, ter sobrevivido à Segunda
Guerra Mundial. Em um de seus relatos sobre alguns acontecimentos daquela
época, lembra com clareza do dia em que estava em uma torre durante um ataque
aéreo americano e uma bomba passou em queda livre a dois metros de distância de
seu ombro, além do brutal pós-guerra, quando os americanos, um povo que privou
e desrespeitou toda uma cultura através da violência, fizeram com que milhares
de japoneses de classes mais baixas sofressem com um regime autoritário, uma
economia e política em frangalhos.
Dando um salto no tempo, após fundar sua própria revista de mangá em 1967, Tezuka, ainda lutando contra a depressão e fantasmas de um cenário que marcou a história humana, viu-se frente aos horrores da Guerra do Vietnã e um regime de censura adotado para mangás pelo governo japonês (boa parte ainda imperialista pós-guerra). Não se sabe se foi este o estopim para Tezuka mudar a postura e tons de suas obras. O que antes era cheio de positividade e inocência acabou virando drama e angústia, como visto em Ayako.
Publicado entre
os anos de 1972 e 1973, Ayako tem uma imersão mais pesada,
colocando em jogo o caráter e a honra familiar japoneses. Na trama, Ayako,
ainda uma menina de quatro anos, é testemunha de um assassinato praticado pelo
seu irmão mais velho, Jiro, recém chegado da guerra e, para que Ayako não conte
nada sobre o que viu, a família acaba isolando-a no porão de um depósito. Os
anos se passaram e Ayako, agora uma mulher de 27 anos, consegue fugir, mas é
confrontada por um mundo desconhecido e uma família às ruínas, tomada pelas
mentiras, traições e incestos.
Tezuka consegue conduzir a trama de forma orgânica e incomplexa, mesmo com o número de personagens razoavelmente alto e Ayako não sendo o centro da história. As sub-tramas ganham espaço de forma natural e requerem atenção especial. O grande desafio de Tezuka quanto a este cenário era estruturar uma narrativa que conduzisse o leitor sem perder a linha tênue do enredo principal durante as três sequências que dividem a obra: infância, adolescência e a fase adulta de Ayako. Uma vez que o autor usa a prisão da personagem como meio para a passagem de tempo da trama, ele elabora e desenvolve o restante do elenco de modo que todos possuem apresentação e fechamento.
Mesmo a história real contando os horrores sofridos por grande parte do povo japonês nos anos que sucederam a grande guerra, Tezuka descreve cirurgicamente o lado de famílias mais favoráveis e poderosas do Japão. Estas, mesmo sofrendo com perdas de terras para agricultores designados pelo governo, ainda assim mantiveram-se tradicionais ao ocidentalismo forçado e viviam economicamente acima da média populacional para um país desestruturado e sem auxílios externos, políticos ou humanitários.
Ayako possui um
tom obscuro, onde a malícia e ambição do homem acaba por deixá-lo corrompido e
irracional. A sensualidade posta sobre a personagem por vezes acaba deixando a
situação desconfortável. Tezuka usa e abusa destes sentimentos impuros em
diversos momentos e personagens.
O cuidado para
que a trama tenha uma continuidade e um encerramento, ligando cada ramificação
feita para então chegar num final onde tudo se conclua, é a magia desta obra
e, para isso, Tezuka mantém uma estrutura de página fixa e pouco ousada,
fluindo ainda mais a leitura. Seus quadros, sempre com ângulos posicionados para
ambientar o leitor à situação, exemplificam uma das características que fazem deste autor o
gênio que é, porém, esta também foi uma forma adotada para amenizar a quebra da
imersão com a proporção errônea dos personagens e/ou pontos de fuga desconexos,
que acabam incomodando muito. Sua quebra de movimentação também deixa a
desejar, mas este ponto pode ser relevante, visto que a obra foi criada numa
época em que a estrutura narrativa entre arte e quadros eram vistas como elementos
individuais entre si e ficava à cargo do roteiro ambientar o leitor.
Osamu utiliza seus traços e cenário a seu favor, mantendo o quadro puro e sem excessos, com traços limpos e claros, visto exemplos de artistas que seguem as mesmas características de construção narrativa como Kazuo Koike (Lobo Solitário) ou Hiroshi Hirata (O Preço da Desonra), onde sombras e hachuras são usadas em abundância para dar volume à arte.
Ayako possui 720 páginas, capa
dura e uma lombada costurada, o que facilita muito a leitura, e, para os mais
cuidadosos, a lombada se mantém intacta. Por conta do seu tamanho gera certo
desconforto em alguns momentos, mas devido ao papel pólen não torna-se um
mangá pesado.
Um belíssimo
material publicado pela editora Veneta que vale a atenção de leitores assíduos
de obras mais ousadas e nada casuais.
Por Pablo Peixoto
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