“Em nossa derrota, encontramos orgulho. Em suas vitórias
vocês encontraram vergonha.”
Peter La Farge
Johnny Cash é um daqueles artistas que transcende rótulos
e gêneros musicais. Afinal, qual outro artista country cantaria músicas
anti-guerra ("What is Truth", "Singing in Vietnam Talking Blues", "Drive On"), pró
controle de armas ("Don’t Take Your Guns to Town", "Devil’s Right Hand"), que vestiria
preto em solidariedade às minorias e aos excluídos ("Man in Black"), que gravaria
álbuns ao vivo em penitenciárias em favor à reforma do sistema prisional e aos
direitos humanos de condenados (At Folsom Prison de 1968 e At San
Quentin de 1969)? Que outro artista country sulista, branco, gravaria um álbum inteiro
com canções de protesto a favor dos direitos civis dos povos nativos
americanos?
Em 1962, Johnny Cash assistiu à apresentação de um
desconhecido cantor folk chamado Peter La Farge. Cidadão nativo americano, La
Farge cantava sobre os problemas enfrentados pelos povos nativos e Cash, que
sempre acreditou ter ascendência Cherokee, tomou para si a incumbência de levar
esses assuntos a audiências maiores.
Gravado entre março e junho de 1964 e lançado em 1 de
outubro daquele ano, este seria o primeiro de vários álbuns conceituais que ele lançaria ao
longo de sua carreira. Porém, não foi bem recebido pela crítica, sendo
completamente ignorado pelas rádios que, um ano antes, haviam tocado à exaustão
o sucesso "Ring of Fire". Formada em sua maioria por cidadãos conservadores e
ultra-patriotas, a base de fãs do cantor, desnecessário dizer, detestou o
álbum. O único single, "The Ballad of Ira Hayes", só apareceu na lista da Billboard
depois de um esforço pessoal de Cash e de seu amigo Johnny Western, que compraram
mais de mil cópias do single e enviaram a rádios e disc jockeys de todo o país,
juntamente com uma carta que acusava a indústria musical de censurar sua
música. Esta carta* foi publicada por Cash como um anúncio de página inteira na
Billboard Magazine de agosto de 1964 como um ato de protesto e indignação
frente à relutância da mídia em executar, divulgar e até mesmo resenhar o
single.
Fã declarado de Dylan e aproveitando o revival do folk
que aconteceu no início dos anos 1960 e que teve o protesto como uma importante
caraterística, Cash gravou um disco muito mais folk do que country. À sua
tradicional banda de apoio, Tennessee Trio, foi somado o virtuoso Norman Blake
no violão e o acompanhamento vocal da Carter Family, que tinha June Carter entre
as cantoras.
"As Long as the Grass Shall Grow": composta por La Farge,
teve a letra levemente alterada por Cash para a gravação. Cash conta a história
triste do que aconteceu com parte da tribo dos Seneca, que tiveram suas terras
inundadas pela construção da represa Kinzua. Essa reserva havia sido garantida
ao povo Seneca em 1794 por um tratado assinado por George Washington e que foi
ignorado por John Kennedy em 1961, quebrando uma promessa de campanha com a
tribo e obrigando-a a deixar sua terra e migrar para outra região. Ironicamente,
a expressão “as long as the grass shall grow” foi usada para concluir todos os
tratados assinados entre o governo e os povos nativos. A música que abre o
álbum possui o refrão cantado mas estrofes faladas na voz potente de Cash, que
usa seu dom único a favor da interpretação, carregando de seriedade e
sentimento a história contada. A levada do violão, típica de balada, e a batida
indígena da percussão constroem o clima grave exigido pela letra.
"Apache Tears": Cash visitou a mãe de Ira Hayes e recebeu
dela um colar com uma obsidiana preta, a Lágrima Apache. Após o massacre de
Wounded Knee, as centenas de corpos de indígenas mortos foram deixados para
apodrecer ao relento. Às mulheres sobreviventes foi negado o direito de um
ritual funeral sagrado ao que elas, pela primeira vez, choraram. Suas lágrimas,
ao atingirem o solo, tornaram-se negras. Profundamente comovido, Cash compôs um
protesto doloroso em homenagem aos povos nativos em constante mudança de
reserva em reserva. Em especial, a segunda estrofe revela e protesta a
violência sexual sofrida por mulheres indígenas. Acompanhado por um violão
simples e um tambor de couro e cantando uma canção sem refrão, Cash faz-se
ouvir. E emociona.
"Custer": talvez a música mais chocante do álbum. Composição
de La Farge, Johnny Cash a interpreta com seu famoso tom sarcástico ouvido em
músicas como “25 Minutes to Go” e “Sam Hall”. A letra conta um assalto a uma
tribo Lakota realizada pelo General Custer, mas que acabou sendo arrogantemente
mal calculado, mal sucedido e que resultou em sua morte. A batalha, conhecida
como A Batalha de Little Bighorn, é sempre contada pela visão dos perdedores
como um massacre, mas aqui o papel se inverte e o povo indígena vitorioso conta
sua versão, honestamente debochada, sobre o papelão de um exército comandado
por um militar petulante que teve seu escalpo loiro retirado à faca. Primeiro
arranjo country a-lá-Cash do álbum, apresenta um Tennessee Trio perfeito em sua
simplicidade.
"The Talking Leaves": composta por Cash, esta canção presta
homenagem a Sequoyah, um Cherokee que, mesmo pobre e sem escolarização,
desenvolveu o alfabeto Cherokee, promovendo o registro escrito da língua e o
letramento da tribo. Propositalmente falada, talvez para emular a tradição oral
dos povos nativos, a interpretação é acompanhada pela Carter Family em um
lamento quase assombrado. O dedilhado preciso de Norman Blake é completado pelo
baixo de Marshal Grant, garantindo a qualidade acústica da faixa.
"The Ballad of Ira Hayes": a música mais importante do
álbum. Composta por La Farge, é interpretada com maestria por Cash. Ira Hayes,
um nativo americano da tribo Pima, é um personagem famoso na história bélica
dos Estados Unidos. Ele foi um dos sobreviventes da Batalha de Iwo Jima e um dos
soldados a erguer a bandeira americana no Monte Suribachi, ato eternizado na
famosa fotografia de Joe Rosenthal. Foi considerado um herói de guerra e
recebeu condecorações e medalhas pelos atos de bravura. Ao retornar à vida
normal, porém, sofreu do que todo nativo americano sofria: pobreza, preconceito
e esquecimento. Morreu em decorrência do alcoolismo em 24 de janeiro de 1955. A
música inicia com um tema fúnebre tocado em uma flauta, sendo seguido pelo
chamado triste de Cash: “Ira Hayes, Ira Hayes”. A bateria, que recorre seguidas
vezes a batidas marciais, enfatiza a história de Ira.
"Drums": outra composição de La Farge, a letra fala da
“americanização” ou “branqueamento” imposto às populações nativas
norte-americanas. “Índios” não são bem vistos em nossa “civilização” e Cash
deixa isso muito claro ao cantar que “eles irão me educar na regra dourada do
homem branco” ou “eu vou quando me chamam de Billy, apesar de eu possuir um nome
indígena”. Um protesto ácido, a letra é uma bela lição ao branco colonizador.
Novamente a Carter Family faz um bom trabalho vocal enquanto a percussão de
tambor mais acelerada torna urgente o clamor indígena.
"White Girl": a única balada de amor do álbum, é trágica
como a história dos povos nativos. O romance entre uma mulher branca e um nativo
americano está fadado ao fracasso e o final já é entregue no segundo verso da
canção. Aqui, La Farge entrega uma metáfora ao mito da inclusão e Cash
interpreta um ressentido e, ao final, consciente “índio”: “Fui o animal de
estimação de uma garota branca, seu índio cativo, exibido e descartado”.
Segunda e última música com arranjo country, o Tennessee Trio dá o tom
tradicional ao tema.
"Vanishing Race": nesta composição de Johnny Horton, Cash
dá voz a um canto nativo que evoca as áridas pradarias do Arizona ou Novo
México e a letra parece descrever um ritual de passagem Navajo. Com uma
atmosfera assombrada, a canção finaliza de maneira melancólica um álbum de
protesto que não tinha nada de esperançoso.
Com um status de polêmico mesmo antes de seu lançamento,
dado seu posicionamento político a favor dos direitos dos povos nativos, é,
hoje, um álbum cultuado e um registro mais do que relevante na
carreira de Cash.
Johnny Cash nunca foi um vanguardista no aspecto sonoro
ou musical. Tinha, porém, voz, estilo e talento únicos que fizeram dele um
artista importantíssimo para a música americana. Foi também corajoso o
suficiente para defender suas posições políticas independente de público e da
indústria musical. Em Bitter Tears, temos apenas um dos inúmeros exemplos de seu
ativismo.
Em tempos de ascensão de políticas indigenistas sombrias, um álbum lançado há quase 55 anos por um cantor country americano ainda tem
muito a dizer.
Por Fábio Brod
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