
Numa dessas distorções de percepção histórica (não muito
difíceis de explicar), o Grateful Dead virou uma espécie de piada riponga, de
shows masturbatórios sem fim, de fãs ridículos e obcecados em suas
camisetas tie-dye apertando as panças, de figuras folclóricas e
abobalhadas como Jerry Garcia e Pigpen, da casa vitoriana que virou comuna
hippie em Haight-Ashbury e da absoluta falta de conexão disso tudo com o mundo
real. Bem, não sou eu que vou te convencer do contrário em parcos três mil
caracteres, mas vale o registro de que, num intrincado casamento de
casualidades, esse sexteto californiano perpetrou um dos mais belos, sensíveis
e subestimados clássicos do rock dos anos 1970, American Beauty.
Era o sexto disco da banda em três anos, no buraco que se
abriu entre a fase de espanto causado por aquela draga psicodélica que
misturava rhythm and blues e country com dodecafonia e aditivos variados
nos acid tests da vida (1967/1970), e a fase de caricatura "toca
Raul", que durou até o fim da banda, em 1995.
O negócio é que, logo no início, o Dead subverteu a regra
de trabalho da época, que era centrada na gravação de discos. O forte do grupo
eram os shows - dá pra ver pela discografia inicial, que coalhava álbuns ao
vivo eletrizantes com discos de estúdio frustrantes. O executivo da Warner
Records, Joe Smith, lembra, apavorado, que os músicos "ficavam chapados um
tempão, vivendo num mundo de fantasia procurando sons impossíveis" durante
as gravações.
Não é de espantar que a mitologia da banda em cima do
palco crescesse proporcionalmente a seu descontentamento em estúdio (dessa
fase, entretanto, vá sem medo ao assustador e complicado Anthem of the Sun,
de 1968). Acontece que a mesma mitologia lisérgica e desregrada que a banda
ajudou a cristalizar chegava à década de 1970 retorcida, fraturada, doente,
ressentida. A tragédia de Altamont já havia virado a página da era dos
festivais, Jimi e Janis já estavam mortos e, afinal, o "palácio da
sabedoria" encontrado ao final do caminho do excesso não era lá tão deslumbrante
assim. Bob Dylan e a The Band desmontaram a fase da psicodelia gritante
multicor na base da simplicidade e doçura - dando o norte para Crosby, Stills
& Nash, os Byrds de Gram Parsons, Neil Young, James Taylor, os Beatles
do White Album, e etc.

Sentados num contrato de nove (!) discos e liberdade
absoluta no estúdio, o Dead estava longe de honrar as expectativas da Warner
(não à toa, American Beauty foi seu último disco de estúdio pela
multinacional). No meio da trajetória esquisitona e de um ambiente revolto no
pop planetário, a banda também vivia uma fase de amadurecimento forçado. O pai
do baixista Phil Leash havia morrido recentemente e a mãe do guitarrista Jerry
Garcia estava agonizando depois de um acidente de carro. Ao mesmo tempo, o
tecladista Tom Constanten deixara o grupo e o percussionista Pigpen entrava na
reta final de sua humilhante briga contra o alcoolismo, perdida em março de
1973.
Esse clima de prostração e reconhecimento seria sentido em cada acorde de American Beauty. O guitarrista Bob Weir lembra disso como "tirar as roupas de astronauta e voltar à Terra vestindo jardineiras". Há muito de fixações espirituais emolduradas por violões, banjos e letras que falam de morte e passagem do tempo. Às vezes quase religioso ("Há uma fonte que não foi feita por mãos de homens", em "Ripple"), às vezes raivoso ("Candyman"), às vezes buscando a simples transcendência, ("Quando não havia ouvido algum para ouvir, você cantou para mim", em "Attics of My Life"), o disco possui harmonias vocais que derramam uma beleza plácida que caminha entre folk, rhythm and blues, country, southern gospel, bluegrass e pop americano. Nada de solos, experimentos, ruídos lisérgicos, papos surrealistas. Apenas maravilhosas canções em arranjos acústicos e o choque entre o sonho e a realidade - note como "american beauty", na capa do disco, pode ser lido como "american reality" também.
Não demorou muito o Dead estaria de volta às turnês
monstruosas e aos shows de seis horas, dando munição aos preconceituosos. De
tal forma que nem a recente onda alt country ajudou a sagrar American
Beauty como um dos álbuns básicos da virada dos anos 1960 para os 1970.
Surpreenda-se, então.
Texto escrito por Ricardo Alexandre e publicado na Bizz #209,
de janeiro de 2007
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