Review: Bob Dylan – Rough and Rowdy Ways (2020)


Parem as máquinas! O compositor mais importante da história do rock está de volta. Sempre que Bob Dylan lança um novo disco, o (meu) mundo para! Já ouviram falar em sexta-feira gorda? 19 de junho, mesmo dia em que Neil Young também desencava Homegrown, um de seus álbuns perdidos feitos nos anos 1970.


Toca o despertador, feriado na Ilha da Fantasia — Rough and Rowdy Ways já está disponível em diversas plataformas de streaming — é como funciona o mercado musical nos dias de hoje. Antes de colocarmos as garras no disco físico podemos ouvi-lo no Spotify, Deezer, etc. Indisponível para venda no país, o álbum (CD/LP duplo) pode ser encomendando diretamente no site oficial do artista (com entrega em julho). Rough and Rowdy Ways, seu trigésimo nono trabalho de estúdio, é imensamente superior a Tempest (2012), último e bom disco de inéditas do artista norte-americano. E mais: esse conjunto de dez canções, primeira comenda autoral de Dylan após a láurea do Nobel em 2016, passa a ser um dos grandes acontecimentos musicais de 2020.


Rough and Rowdy Ways é lírico, literário, extremamente caleidoscópico e muito mais do que apenas “áspero e turbulento” como o nome sugere — muitas vezes também há delicadeza e refinamento. Como singles, três faixas já haviam antecipado o triunfo do álbum: "Murder Most Foul" (no topo da Billboard com 10 mil downloads em apenas uma semana), "I Countain Multitudes" e "False Prophet". A medida em que foram lançadas, gradativamente elevaram a expectativa até a revelação final do pacote completo. E ao rasgarmos o celofane dessa embalagem virtual, Bob Dylan novamente não nos decepciona.


Há um recorrente sentimento nostálgico na voz que transmite essas histórias. Bob Dylan fala de mitos, lendas, faz reflexões, narra visões, nos leva até a galáxia poética corporizada em seus pensamentos. Outro fator importante é perceber seu revigoramento como intérprete. Em retrospecto, desde Shadows in the Night (2015), passando por Fallen Angels (2016) e Triplicate (2017), ao revisitar o repertório de Frank Sinatra e um vasto songbook de standards estadunidense, Dylan remodelou sua forma de cantar. Hoje, esse cantor de 79 anos parece manipular limitações, transformando-as em adjetivos, descobrindo novos maneirismos, encaixes e emissões vocais. Ainda sobre as preliminares que o trouxeram até aqui, trata-se de um déjà-vu do modus operandi que já havia utilizado anos antes em seus discos de covers de folk blues — Good As a Been to You (1993) e World Gone Wrong (1994) -, experiências que anteciparam outro de seus renascimentos artísticos em Time Out of Mind (1997), álbum ganhador de três Grammy. 



Diferentemente de muitos artistas que reagiram à pandemia com reflexões em busca de dias melhores, Dylan decidiu não nos oferecer conforto, pelo contrário : sugere o caos da experiência humana. Em Rough and Rowdy Ways ele explora cartografias emboloradas pelo tempo, mas completamente convergentes com o mundo apocalíptico de hoje. "O álbum nos leva até  um transe, e quando saímos desse estado de consciência conhecemos lugares onde nunca estivemos antes", disse Mikal Gilmore, da Rolling Stone. A tempestade de imagens evocada pelas letras está pulverizada na mitologia clássica, como também (em algumas músicas) seus dedos parecem manipular títeres semelhantes aos que estiveram nas mãos de Tristan Tzara e Old Bull Lee, découpé que aleatoriamente recorta e mistura tudo/todos. Assim, Dylan libera espontâneos fluxos de consciência e sugere fusões de prenomes, epifanias, tempos verbais, frases, palavras — evoca epopeias, fala de amor, vingança e nos narra — pelo seu ponto de vista — a eterna pendenga entre o bem e o mal. Rough and Rowdy Ways pulveriza as memórias de um mundo que não existe mais, mas que permanece eternizado em relatos e desejos. Por outro lado, conecta seu plugue no ruidoso amplificador do atual estado das coisas. Presente, passado, futuro:  entre os principais personagens das letras, temos heróis de séculos passados, personagens das grandes guerras travadas pela humanidade, nomes da música, cinema, literatura, além do próprio pensamento vivo do autor dessas histórias — Bob Dylan!


E para materializar tudo isso, além de Bob Dylan (voz e violão), na banda base de Rough and Rowdy Ways o chefe convoca Charlie Sexton e Bob Britt (guitarras), Tony Garnier (baixo), Donnie Heron (steel guitar, violino e acordeom) e Matt Charberlain (bateria). Ainda há participações especiais de Blake Mills, Benmont Tech, Alan Pasqua, Tommy Rhodes e Fiona Apple.


A viagem no tempo começa com a capa, baseada numa imagem do fotógrafo inglês Ian Berry, que revela a dança de um casal enquanto um homem cambaleante se debruça sobre um jukebox. A cena da fotografia original aconteceu em 1964, numa boate na extinta Cable Street, no East London.  O título do álbum é uma referência a My Rough And Rowdy Ways (1960), obra póstuma do artista country Jimmie Rodgers (1897-1933). Na parte interna, vemos a versão colorida digitalmente de uma conhecida fotografia clicada em 1931 — lá estão Jimmie Rodgers e a família Carter (Maybelle, Alvin e Sara) em plena Main St., em Louisville, no Kentucky. O crédito da imagem original pertence ao BCMA Museum. A reunião dos músicos nessa foto foi uma das primeiras jogadas de marketing da indústria musical, no caso a Victor (gravadora de ambos), que em plena época da Grande Depressão armou campanhas publicitárias para impulsionar a vendagem de discos.



Um aviso: ouça Rough and Rowdy Ways como se você estivesse lendo um livro — peculiaridade da escrita de um ganhador do Nobel de literatura que utiliza a música para publicar seus poemas. Mesmo ao declarar que "as letras são reais, tangíveis, não são metáforas", como disse ao entrevistador do NY Times, Dylan apenas camufla as irrefutáveis virtudes poéticas de sua nova realização, e como historiador, abre o Livro da Vida e aponta minúcias dessas revelações.


O lado A começa com “I Countain Multitudes”, tema inspirado inicialmente em "Song to Myself", poema do escritor norte-americano Walt Whitman. “Me Contradigo? Pois bem, contradigo-me. Sou amplo, contenho multidões", trecho extraído de Folhas de Relva, Bíblia whitmaniana com primeira edição datada de 1855. Em Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (2019), Dylan cita o referido poema que agora é vertido parcialmente em sua música. Da mesma forma que fez em "When the Deal Goes Down", de Modern Times (2006), com versos inspirados em texto de Henry Timrod, um desconhecido poeta da época da Guerra Civil norte-americana, novamente busca inspiração na poesia do século XIX.


"A música é como uma pintura, você não pode ver tudo de uma vez se estiver muito perto. As peças individuais são apenas parte de um todo", disse Dylan ao historiador Douglas Brinkley, na já referida entrevista ao NYT. É fácil percebermos uma ligação direta de “I Countain Multitudes” com o poema original, mais precisamente sobre o trecho #51, mas também podemos notar uma correlação a escrita de Allen Ginsberg, um dos maiores seguidores de Whitman no século XX. Dylan e Gisnberg se auto influenciaram ao longo dos anos, além de se tornarem muito próximos. O mencionado recorte de “Song to Myself” também celebra as próprias autocontradições do(s) orador(es), algo pelo qual Dylan — Ginsberg e o próprio Whitman (três geminianos) — foram condenados (e elogiados) ao longo de suas trajetórias artísticas.


Sem bateria ou mínima percussão, ele canta sobre base de violão, guitarra, pedal steel e baixo acústico. Repare na essência circular do tema, autocentrado no bordão de Whitman. Dylan mais recita um poema do que canta uma canção (abordagem de vários temas do álbum). Puro fluxo de consciência, a letra ainda contém referências a Edgar Alan Poe, Wiliam Blake, Frédéric Chopin, Ludwig van Beethoven, Anne Frank, Indiana Jones, David Bowie, Rolling Stones, além de uma possível nova citação ao Titanic — "I’m going to Balinalee", porto no Condado de Longford visitado pelo navio em sua rota. Acredita-se que esse trecho ainda possa ser alusivo ao poeta cego Antoine Ó Raifteirí, frequentemente mencionado como o último dos bardos errantes, autor de The Lass de Ballynalee. É um início estupendo.


"Não sou nada parecido com minha aparência fantasmagórica", declara em "False Prophet", descaradamente decalcada de "If Lovin' Is Believing'', tema escrito por Billy ''The Kid'' Emerson, e gravada pela Sun Records em 1954. Em empolgante encarnação crooner-apocalíptica, Dylan cospe as palavras como um velho Reverendo — "Não sou um falso profeta / apenas sei o que sei", antítese ao bordão socrático — "Só sei que nada sei". Assim, coloca-se na posição de alguém que viu além do senso comum, um poder de clarividência que também pode estar associado ao charlatanismo. De todo modo, desde os anos 1960 Dylan rejeita o epíteto de Salvador da Pátria, como disse em 2004 numa entrevista a Ed Bradley para o programa 60 Minutes: "Você se sente um impostor quando alguém pensa que você é algo que não o representa. Eu nunca quis ser um profeta".



A letra de "False Prophet" assoma uma voz vingativa, como um vernáculo bíblico do Velho Testamento. Me debato com a lembrança de "Narrow Way" e "Pay in Blood", duas das melhores faixas de Tempest. Sem voar muito longe, buscando referências na era Jack Frost, alter ego que Dylan utiliza para assinar a produção de seus álbuns desde Love & Theft (2001), encontramos requintes poéticos dignos de figurar em boas antologias do gênero: "O que você está olhando? / Não há nada para ser admirado / Cingidos por uma brisa úmida / Poderemos passear nesse jardim longínquo e amplo / E próximo a fonte, nos reconfortaremos à sombra".  Nesse trecho, a geografia artística explorada por Bob continua na segunda metade do século XIX, uma das bússolas de sua escrita nos últimos anos.


Musicalmente, "False Prophet" ainda se assemelha a paisagens sonoras coligadas ao Chicago Blues e ao rockabilly dylanista, temas como "Summer Days", "Lonesome Day Blues", "Cry a While", "Someday Baby" e "The Levee's Gonna Break", representando uma espécie de striptease blues, como disse Brian Hiatt, jornalista da Rolling Stone. Tudo funciona à moda antiga, profusão matemática e cíclica que cirurgicamente retoma ao ponto inicial — o riff da guitarra de Charlie Sexton, prenúncio de uma nova estrofe. "Charlie habita uma música em vez de atacá-la. Ele sempre fez isso tocando comigo", declarou Dylan sobre Sexton.


"Depois da meia-noite, se você ainda quiser me conhecer / Estarei na Taverna Cavalo Negro na Rua Armagedon", nos diz na tragicômica "My Own Version of You". Inspirada no clássico de Mary Shelley, o autor constrói uma amante com pedaços de cadáveres roubados: "Eu serei salvo pela criatura que materializar". Como figura chaplinesca, parte em busca do ser perfeito — "Eu vou fazer você desdobrar o piano como Leon Russell / tocar como Liberace / Igual São João Apóstolo". Apesar da seriedade da interpretação, a letra está repleta de frases genuinamente engraçadas. Dylan ainda faz referências a Shakespeare, a Ilíada de Homero, Bo Diddley, Don Corleone de Brando e Tony Manero de Pacino, bem como faz uma curiosa ligação com Freud e Marx, retratados como "inimigos da humanidade".


Estou me entregando a você, de Salt Lake City a Birmingham / De East LA a San Antone / Acho que não posso suportar uma vida solitária", nos diz na marcha romântica “I’ve Made Up My Mind to Give Myself To You", que um crítico da Folha de São Paulo chamou de “lenga lenga excessivo” (internem o cara!). Como uma demo tape, Dylan e banda parecem imprecisos no início do número. Falsa impressão. O discreto coro sussurrado que permanece ao longo de toda a canção empresta uma memória ecumênica. E “I’ve Made Up My Mind to Give Myself To You" passa raspando no gospel  — "Se eu tivesse as asas de uma pomba branca de neve / Eu pregaria o evangelho, o evangelho do amor". O breve solo de Charlie Sexton sugere um dos principais recados do álbum — individualmente, não são os músicos que brilham em Rough and Rowdy Ways, mas sim o conjunto dessa reunião. Num trabalho repleto de espaços vazios, com instrumentação minimalista, essência acústica e sem performances mirabolantes — é a simplicidade que está no comando. Há apenas dois ou três solos de guitarra no álbum, todos duram menos de 15 segundos. Talvez poucos destaquem “I’ve Made Up My Mind to Give Myself To You" dentro do contexto da obra, mas certamente estamos falando de uma das suas interpretações mais convincentes. É a única canção de amor clássica do disco — "Eu vi o nascer do sol, eu vi o amanhecer / Quando todos se forem, eu vou me deitar ao seu lado". 


"Black Rider" é um poema sombrio, onde sugere-se a inversão dos prenomes: quem seria o Cavaleiro Negro? Surge a lembrança da peça homônima escrita por William Burroughs, com direção de Robert Wilson e música de Tom Waits (ao qual podemos imaginá-lo cantando uma versão): "Seja razoável, senhor / Seja honesto, seja justo / Que todos os seus pensamentos terrenos se transformem numa oração". Dylan circula em torno da iminência da morte, fala de paixões fugazes, raiva, amor, sofrimento, fortalecimento, medo e sarcasmo — "Vá para casa e fique com sua esposa / Pare de visitar a minha". E como ameaça final diz "Um dia desses vou deixar de ser gentil". Essa sensação de exaustão, de poder controlado e da vantagem pela posse de segredos, ou a própria reincidência de tentativa e erro, permite que não haja desperdício de energia — "Meu coração está em repouso, gostaria de manter as coisas assim / Não quero lutar / Pelo menos não hoje". Há apenas o baixo acústico de Tony Garnier pontuando cada bordão, além do violão flamenco evocando uma imagem solitária do Cavaleiro Negro. Um dia Nick Cave também irá cantá-la.



"Não sei cantar uma música que não entendo". Direta ou indiretamente, o blues é um de seus combustíveis favoritos. Por mais que o eterno retorno ao blues possa soar repetitivo para alguns, esse é um território dominante na Era Jack Frost (2001/2020). Em sua extensa discografia já rendeu homenagens a nomes como Blind Willie McTell e Charlie Patton. A chapa esquenta em "Goodbye Jimmy Reed", e assim como fazia o homenageado, Dylan sopra sua gaita entre uma estrofe e outra (timidamente e pela única vez no disco), e roga láureas a um dos mais lendários bluesmen da história. "Teu reino é poder e glória / Suba a colina, conte a verdadeira história / Revele-a nesse tom puritano e simples / Na intimidade, quando uma pessoa está sozinha / Adeus Jimmy Reed, na velocidade de Deus / Bata na Bíblia, proclame uma epístola". "Goodbye Jimmy Reed" percute a lembrança dos inferninhos no sul dos Estados Unidos, quando no mesmo domingo em que cultos religiosos eram tomados pelos fiéis, ao final do dia, muitos deles se acotovelavam nos inferninhos para beber uísque de milho e chacoalhar o esqueleto ao som de um blues. "Mulher transparente num vestido transparente / Combina com você, devo confessar / Vou colher suas uvas, vou beber esse suco". Velho safado ...


“Mother of Muses” é ao mesmo tempo "uma canção de amor, uma canção sobre solidão e morte, um tratado sobre como a história e a cultura estão entrelaçadas", declarou Marc Hirsh, do Boston Globe. Em tom declamatório, a voz de um cantor quase octogenário surge clara e agradável numa ode sobre a própria natureza da arte e da poesia, discorrendo sobre a motivação de várias figuras militares conhecidas — "heróis que ficaram sozinhos". Chris Willman, do Variety, advertiu da semelhança de "Mother of Muses" com "The Tower Song", de Leonard Cohen. Realmente há espelhamentos temáticos entre ambas, mas trata-se de temas distintos. Na letra, Dylan cita William Tecumseh Sherman, Bernard Montgomeryy, Georgy Zhukov e George Patton — "Que abriram caminho para Presley cantar / que abriram caminho para Martin Luther King (...) / Eu poderia contar suas histórias o dia todo".


Cingido pelo Espírito Santo ou pelo espírito de vingança, o contraditório Dylan segue sua guerra-santa. "Cinco milhas ao Norte do Purgatório —  A um passo do além — Orei aos pés da cruz, beijei as donzelas e atravessei o Rubicon", nos fala em mais um blues, e não apenas um simples blues. "Crossing the Rubicon" é um tema devastador, com todos os ups and dows que um bom blues possa absorver. Sensacional trabalho das guitarras de Charlie Sexton e Bob Britt, além das dinâmicas/divisões/alternâncias entre sutileza e ataque dos maneirismos controlados do baterista Matt Chamberlain. Quando Caio Júlio César, conquistador da Gália, desobedeceu às ordens do Senado romano em 49 AC e com uma de suas legiões chegou ao Norte da Itália, iniciou uma guerra civil que percutiu o ocaso republicano de Roma. Atravessar o Rubicon é como ultrapassar uma linha divisória que nos leva a horizontes desconhecidos — "No décimo quarto dia eu atravessei o Rubicon / Justamente no mês mais perigoso do ano / No pior momento, no pior lugar / (...) Cedo estava em pé para saudar a Deusa do Amanhecer / Eu escrevi na minha carroça 'Percam a esperança' / E então atravessei o Rubicon". Alguém já pensou em ouvir um Chicago Blues com letra que descreva imagens análogas a Roma Antiga? Ah, sim, Dylan já havia feito isso com "Early Roman Kings", de Tempest. Mais alguém? (((vácuo)))


Key West, ponto mais ao Sul da Flórida, inspira a faixa homônima, um dos momentos mais elegíacos de Rough and Rowdy Ways. Hemingway, Tennessee Williams e Shel Silverstein fixaram residência na famosa urbe tomada por casas em tom pastel. Será que Dylan também comprou alguma mansão por lá? Após o fogo e o enxofre de algumas das músicas anteriores, em “Key West (Philosopher Pirate)” ele parece ter encontrado a beatitude perdida, quem sabe doces sortilégios em suas reflexões — “Key West é o lugar para estar se você está procurando por imortalidade". O permanente vai e vem do acordeom de Donnie Heron nos aproxima de um sentimento de paz. Quando diz "Procurando amor, inspiração / Naquela estação de rádio pirata", voltamos ao Theme Time Radio Hour, seu programa radiofônico que foi ao ar entre 2006 e 2015 na XM Satellite Radio. Em outro trecho, Dylan menciona ícones da geração beat — Allen Ginsberg, Gregory Corso e Jack Kerouac - que assim como ele “nasceram no lado errado da linha férrea”. Também faz referências ao clima agradável do sul da Flórida, fala das estações e do encantamento das flores. O tema aflora visões do passado, meditações sobre a imortalidade e a visão do final dos tempos se apresenta como seu sortilégio.



O eclipse de Rough and Rowdy Ways nos revela a obra-prima visual do álbum. "Most Murder Foul", última faixa do lado 4 do segundo LP, nos propõe uma das mais profícuas pinturas da extensa carreira de Dylan. A música é repleta de referências a músicas/artistas e fatos históricos do século XX (e até bem antes desse período), com ligações que vão de Hamlet, de William Shakespeare, até o livro homônimo de Stanley J. Marks, que trata das teorias da conspiração que envolvem o assassinato de John Kennedy. Montamos um player com supostas 65 músicas que são citadas direta/indiretamente em "Murder Most Foul" — OUÇA AQUI.


Com 16 minutos e 31 segundos, "Murder Most Foul" é sua gravação mais extensa, superando "Highlands", de 1997, tema de Time Out of Mind. Ele retoma sua fórmula de contar histórias musicais ao estilo dos velhos tempos, O talking blues, ideário que mistura ritmos repetitivos com um método de interpretação mais falado do que cantado, e até mesmo sem refrão. Basta olhar para sua discografia para encontrarmos temas similares como "Talkin' New York, Talkin' World War III Blues" ou "Motorpsycho Nightmare."


O assassinato de John Kennedy em 1963 é o pano de fundo da canção, mas também é um mote enganosamente simples ao qual Dylan utiliza para que o acompanhemos em sua jornada. Assim, o compositor repassa fatos históricos, referências culturais, faz contrapontos literários, relembra citações de filmes, nomeia músicas e personalidades ligadas ao século XX. E como um narrador atento às mudanças, ele nos alerta de que esse mundo descrito na letra está morrendo — "Eu disse que a alma de uma nação foi arrancada / e agora estamos em um lento declínio".


A impressionante lista de referências utilizadas por Bob Dylan - Beatles, Marilyn Monroe, Patsy Cline, para citar apenas uns poucos nomes dos tantos ligados na canção - é uma mostra significativa dessa imensa teia. Em tempos de pandemia, nova ordem das coisas, imediatismo, fake news e desinformação, Dylan pergunta: "O que é a verdade e para onde ela foi?". "Murder Most Foul" é uma Guernica poética em forma de canção, uma intrigante charada musical que nos instiga a buscar desdobramentos ambíguos. Falar sobre o tema é como tentar explicar um tratado histórico, como também poderíamos pensar num longo podcast em busca de múltiplas interpretações, e mesmo assim, estaríamos apenas raspando um diminuto lote dessa imensa superfície de significados.



Bob Dylan acumula um patrimônio de cerca de US$ 180 milhões. Já vendeu mais de 100 milhões de álbuns, é ganhador de inúmeros prêmios — incluindo Grammy, Globo de Ouro, Oscar e Nobel. Há quase sessenta anos gravando discos, ícone não apenas de uma, mas de várias gerações, ele poderia apenas se autoplagiar, remexer arquivos ou simplesmente aposentar as chuteiras. E assim, sem mover uma palha sequer, apenas o rastro do imenso espólio de sua obra já o manteria ativo na mídia, por décadas e mais décadas. Contudo, sabemos que o exercício de compor, tocar, a gana de ainda manifestar visões artísticas, certamente é o que o mantém saudável e com a cuca fresca. Com isso, desde Time Out of Mind (1997) Bob Dylan vem empilhando álbuns aos quais parece ter reencontrado essa excelência rara de seus grandes momentos. E exatamente nesse 19 de junho de 2020, após uma hora e dez minutos de audição, Dylan novamente nos revela que Rough and Rowdy Ways é muito mais do que um  álbum protocolar: estamos falando de uma nova masterpiece do nosso tempo. A crítica especializada está arrebatada, mas talvez Mark Beaumont, da NME, tenha conseguido sintetizar o peso e a importância deste novo disco: "Dylan é famoso por seu lirismo e pelas alegorias poéticas, mas a gigantesca amplitude cultural e histórica que ele materializa em Rough and Rowdy Ways certamente faz dessa obra o seu Ulisses (referência ao livro de James Joyce), principalmente porque você quebraria a Wikipedia tentando desfragmentar o conteúdo das letras". Dylan sendo Dylan, olhando para o futuro (com olhar ancestral) e justamente próximo ao seu crepúsculo, ele, o eterno bardo do rock, nos apresenta sua maior declaração poética.


CODA: em quarentena em sua mansão em Malibu, na California, Bob Dylan conversou por telefone com Douglas Brinkley em entrevista publicada no NY Times, quando o músico falou do novo álbum e também sobre a atual agitação social nos Estados Unidos, na esteira da morte de George Floyd. "Enojou-me ver George torturado até à morte. Aguardemos que se faça justiça para ele e para a nação", disse. Quando questionado sobre se a pandemia do novo coronavírus seria um sinal bíblico, respondeu: "Eu acho que é um sinal de algo mais que está por vir. A arrogância extrema pode ter consequências desastrosas. Talvez estejamos à beira da destruição. Há inúmeras formas de refletir sobre este vírus. Acho que temos de deixar ele seguir o seu curso".


Por Márcio Grings, do Grings Memorabília


Comentários

  1. Isso não é uma resenha, é um tratado. Absolutamente incrível!

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  2. Em se tratando de Bob Dylan e, principalmente, quando ele lança um álbum soberbo, repleto de citações musicais e literárias, respaldado pela ótima resenha que acabo de ler, tendo como fundo musical o objeto do texto por meio da plataforma Deezer enquanto o CD não chega. Para nossa felicidade, a mediocridade ainda não ocupou todos os espaços.

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    1. parabéns Marcio seu texto sopra sobre nós dados que nos permite admirar melhor esta esfinge chamada Bob Dylan.

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