Rush: revisitando Permanent Waves


O dia era 14/01/1980. Mal havia começado o ano e o mundo dava seus primeiros passos tímidos rumo a uma nova década que marcaria profundamente a cultura popular e a indústria musical. Enquanto muitos se encontravam naquele estado de expectativa para colocar as engrenagens em movimento, os canadenses do Rush adiantavam-se e lançavam um dos seus mais aclamados trabalhos, Permanent Waves, o sétimo de uma extensa discografia. Em 2020, o álbum completou quarenta anos de seu lançamento, e, por esta razão, nada mais propício do que revisitá-lo para tentar entender sua relevância e a capacidade de manter-se atual mesmo após quatro décadas.

 

Bem, precisamos entender o contexto em que o álbum foi lançado. A década de 1970 propiciou o surgimento de grandes bandas reverenciadas até hoje no mundo do rock. Guitarras em alto volume, efervescência de ideais, músicas complexas e muitas vezes psicodélicas, conduziriam a maneira de se fazer o rock and roll. Já os anos 1980 forçaram as bandas a se adaptar a uma nova realidade, pois agora era a vez de usar cabelos longos e armados, teclados e sintetizadores, promover grandes shows em estádios lotados e gravar um videoclipe para passar na MTV. As novas tendências não foram ruins, pois ajudaram a difundir ainda mais a cultura musical. Entretanto, causaram alterações sensíveis na sonoridade das bandas que já vinham atuando desde a década anterior.

 

Com o Rush, a mudança é evidente. A banda construiu uma identidade muito peculiar em álbuns que se tornaram icônicos como 2112 (1976), A Farewell to Kings (1977) e Hemispheres (1978), cujas letras se voltam para a fantasia e contém algumas faixas extensas, conduzindo o ouvinte a jornadas que ultrapassam os vinte minutos. Sem contar os agudos de Geddy Lee, que muitas vezes eram objeto de comentários negativos pelos críticos do ramo musical. Em Permanent Waves inaugura-se um novo período para o trio canadense, como se fosse uma “parte 2” em sua história. Agora as músicas são encorpadas com teclado e tornam-se mais acessíveis ao público (radio friendly, como diria a crítica estrangeira), mas isso não significa perda de identidade, e muito menos, simplicidade, pois, quando se trata de Rush, nada é tão superficial quanto pode parecer.

 

As composições foram todas escritas pelo baterista Neil Peart e são extremamente bem arquitetadas pelo grupo, tudo tem uma razão de ser, ou seja, não há ponto solto. A produção confere muita clareza a todos os instrumentos e mais uma vez ficou a cargo de Terry Brown, que trabalharia com a banda em seu auge, de 1975 (Fly By Night) a 1982 (Signals).

 


O álbum abre com “The Spirit of Radio”, um dos maiores hits do Rush, talvez perdendo em popularidade apenas para “Tom Sawyer”, do álbum seguinte. A música foi inspirada no lema de uma estação de rádio de Toronto, a CFNY-FM, e traz uma reflexão sobre a mudança de comportamento das rádios da época, que passaram de um ambiente livre onde se tocava música pelo prazer para outro em que tudo se transformou em uma questão de dinheiro, e o tempo e a transmissão da arte dependiam de acordos comerciais com gravadoras. A engenhosidade dessa faixa vai além do refrão empolgante. Os detalhes aqui são essenciais, pois em um primeiro momento você pode achar a música desconexa, uma mistura de ritmos que, iniciando com uma guitarra intensa, passa do rock para o new wave e até flerta timidamente com o reggae.  Mas na verdade essa sensação nada mais é do que aquela que o ouvinte sentia ao mudar as estações de rádio, fato que torna a música ainda mais interessante de ouvir.

 

Em “Freewill”, outra faixa que fez bastante sucesso, o ritmo é bem conduzido por Alex Lifeson e apresenta uma ótima ponte ao diminuir a intensidade para a chegada do refrão. Ponto interessante de destaque é que esta é uma das últimas músicas na carreira do Rush em que ouvimos o agudo de Geddy Lee, que, a partir daquele momento, alterou seu estilo de cantar e conteve seus marcantes gritos dos álbuns anteriores.  O título da faixa, em tradução literal, significa “livre arbítrio” e retrata o poder que temos de definir nosso próprio futuro através de nossas escolhas, ainda que optemos por não fazer nada (“If you choose not to decide /  You still have made a choice”). Nada está predeterminado.

 

A terceira, “Jacob’s Ladder”, conta com mais de sete minutos e é conduzida inicialmente por uma batida marcial e por toda sua extensão o clima é mais sombrio. Demorei a gostar, e isso só ocorreu quando entendi o intuito da banda, que era criar uma trilha sonora para a experiência cinematográfica de uma intensa batalha dos raios de sol ultrapassando o bloqueio das nuvens, por isso essa tensão perceptível na cadência da faixa.

 


“Entre Nous” e “Different Strings” são similares na abordagem de preservação da individualidade das pessoas em face da massificação, temática constante nas letras do Rush e simbolizada na famosa figura do “homem do pentagrama” a partir do álbum 2112. A primeira é bem conduzida e se destaca pela presença do violão em seu refrão, e a segunda é uma balada cantada com emoção por Geddy, cujo clima nos remete um pouco a “Tears”, do já mencionado 2112.

 

Por fim chegamos a “Natural Science”, última faixa do álbum e que é dividida em três atos nos seus nove minutos de duração. A letra retrata o equilíbrio entre o mundo natural e o artificial através da ciência e da arte. O começo do primeiro ato, “Tide Pools” (ou “poças de maré”) é lento e suave, apenas voz, violão e o som das ondas do mar, ou seja, é a vida natural em sua origem, até que a música abruptamente ganha aceleração e ritmo e chega ao segundo ato, “Hyperspace”, momento em que se retrata a interferência da ação humana no mundo. O terceiro ato, que dá o título ao álbum, encerra-se de maneira magistral e mostra que a vida na Terra é um ciclo de “ondas permanentes” que, ao voltarem ao oceano, propiciam a existência  simbolizada nas poças de maré, mas, de tempos em tempos, também retornam para mostrar sua voracidade e impor um recomeço à história humana. Essa música não poderia ser mais atual, levando-se em conta o momento de dificuldades criado pela pandemia do COVID-19.

 

E essa última seção da música também nos ajuda a dar sentido à capa do álbum. Nesta é possível ver um ambiente de destruição causado por um fato da natureza, como se uma onda levasse tudo o que estivesse à frente. Apesar das intempéries, isto não seria o fim, mas sim uma oportunidade para um recomeço.

 

É nítido perceber que os temas tratados em Permanent Waves são profundos e muito atuais mesmo depois de quarenta anos, algo que aparentemente se contrapõe ao novo som mais acessível desenvolvido pela banda na década que se iniciava. Mas, como havia dito anteriormente, nada no Rush é superficial. Talvez este seja o grande fator que diferencia o álbum e lhe dá essa sensação de “permanência” dentro da discografia do trio. O passado não foi esquecido. Digamos que as experiências progressivas dos álbuns anteriores foram readaptadas à nova realidade musical e, ainda assim, a banda conseguiu manter sua originalidade e unir de forma equilibrada complexidade e simplicidade em um único trabalho, triunfo que nem todas as bandas podem ostentar.

 

Permanent Waves, lançado apenas 14 dias após o início de 1980, foi um divisor de águas e redefiniu toda a trajetória do Rush, sendo que sua criatividade e originalidade permitem colocá-lo em patamar de destaque dentro da discografia do grupo.

 

Por Paulo César Teixeira Júnior


Comentários

Postar um comentário

Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.