Discoteca Básica Bizz #211: Burning Spear – Marcus Garvey (1975)


Deve ter alguma coisa no ar da freguesia de St. Ann, no interior da Jamaica. Marcus Garvey, o pastor evangélico e sindicalista que se tornou o principal ideólogo do rastafarianismo, vinha de lá. Bob Marley, o maior difusor da crença, também. Nascido na mesma região de ambos, Winston Rodney cantou os preceitos - e o nome - de um ritmo popularizado pelo outro e gerou um dos mais marcantes discos de reggae de todos os tempos.

Misturar música, religião e, invariavelmente, política, era especialidade da cena da ilha. Transformar tudo isso em algo assimilável para o mercado pop (rico) branco (estrangeiro) era o negócio do produtor inglês Chris Blackwell. O inglês, filho da elite que mandava na ex-colônia e dono da gravadora Island, já tinha experiência com as peculiaridades dos artistas locais quando uma dupla apadrinhada por Marley estreou com o compacto "Door Peep", em 1971.

Lançado pelo Studio One, do poderoso produtor Clement Coxsone Dodd, o trabalho trazia a assinatura de Burning Spear. Por trás do apelido ("lança flamejante"), emprestado de Jomo Kenyatta, líder guerrilheiro Mau-Mau alçado à Presidência do Quênia em 1963, estavam Rodney e o parceiro Rupert Willington. Letras pregando a volta à África e despertando a consciência negra não eram novidade na praça jamaicana. Inédita mesmo foi a repercussão obtida pelo recém-formado trio, que, com o ingresso de Delroy Winds, continuou enfileirando sucessos. Em 1972, "Joe Frazier (He Prayed)" ficou entre as cinco mais pedidas do país. No ano seguinte, o LP Studio One Presents Burning Spear converteu nativos com canções como "Ethiopians Live It Out" e "We Are Free".

Em 1974, depois de mais um disco (Rocking Time), o grupo rompeu com Dodd - que, apesar do lucro, não curtia a pregação rasta - e procurou Jack Ruby, do sound system Ocho Rios. Os singles advindos dessa união prenunciavam um grande disco. "Marcus Garvey" saudava o conterrâneo responsável pelo orgulho racial que Rodney sentia. "Slavery Days" perguntava se o ouvinte lembrava da dor e do sofrimento dos tempos de submissão. As palavras ganhavam em contundência com o instrumental fornecido pelo Black Disciples, que incluía alguns dos bambas de Kingston, muitos deles conhecidos por participar dos Wailers de Marley: Rob Shakespeare e Aston "Family Man" Barrett revezando-se no baixo, Earl "China" Smith e Tony Chin nas guitarras, Tyrone Downie e Bernard "Touter" Harvey nos teclados e Leroy "Horse" Wallace na bateria.


As duas músicas bombaram nas paradas da capital, estimulando Burning Spear a se trancar no Randy's Studios para gravar um álbum completo. Marcus Garvey saiu em 1975 e virou um clássico instantâneo da vertente roots, rótulo recebido pelo reggae mais tradicional já naquela época, para se distinguir das inovações que estavam revolucionando o estilo. Os compactos foram colocados em sequência logo na abertura, preparando o espírito para o desfile de devoção ancestral, culto religioso e ativismo social que permeiam toda a obra.

É nesse ponto que Blackwell entra na conversa. Dois anos antes, ele havia patrocinado um trato de estúdio na matriz de Catch a Fire gravada na Jamaica pelos Wailers, a fim de deixar a crueza dos rudeboys mais palatável para o público britânico. Vendo o impacto causado pelo Burning Spear nos alto-falantes dos trópicos, Blackwell decidiu repetir o processo com Marcus Garvey e licenciou o disco. As coincidências não paravam por aí: como em Catch a Fire, o repertório de Marcus Garvey havia sido criado para compor um LP, não uma compilação de singles.

Só que, ao contrário de Bob Marley, Rodney não gostou nem um pouco do "polimento" e rompeu com Blackwell, fundando o selo Spear. Mas basta escutar o disco para perceber que o artista exagerou na bronca. Se a produção realmente maculou hinos como "Invasion", "Old Marcus Garvey" ou "Tradition", é quase inconcebível imaginar o quão matadores deveriam ser os originais entregues a Island.

Em dez lições, uma aula de reggae de seu mais nobre professor para conquistar corações e mentes.

Texto escrito por Emerson Gasperin e publicado na Bizz#211, de março de 2007

 


Comentários

  1. Meu cantor predileto jamaicano junto com o Israel Vibration, Culture, Gladiators. Flexão Fulmegante ! Álbum de cabeceira pra qualquer punk tradicional junto com o álbum PRAISE HIM. Jah bless and Guide

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