Quadrinhos: Estranhas Aventuras, de Tom King (2021, Panini Comics)


Muita gente pensa, erroneamente, que histórias em quadrinhos são destinadas apenas para crianças. É claro que não são. Mesmo as HQs de super-heróis alternam momentos de diversão com edições que trazem discussões mais densas e importantes.

Estranhas Aventuras é um desses casos. A HQ foi publicada pelo selo Black Label da DC Comics, que é a nova versão do clássico selo Vertigo, criado na década de 1990 pela editora do Batman e Superman e destinado ao público adulto.

A história foi escrita por Tom King, ex-agente da CIA que é um dos mais celebrados roteirista da atualidade e tem no currículo trabalhos sensacionais como Senhor Milagre e Xerife da Babilônia, além de um longo período na revista do Batman, que muitos não curtiram, mas que eu acho excelente. A arte é dividida entre dois ótimos ilustradores. Mitch Gerards, parceiro de King em Senhor Milagre, e um dos mais incríveis artistas surgidos nos últimos anos, dono de um traço realista que apresenta um trabalho de colorização de cair o queixo. E Evan “Doc” Shaner, igualmente excelente, e cujo estilo limpo e clássico remete à Era de Ouro dos quadrinhos. No Brasil, Estranhas Aventuras foi publicada em dois encadernados em capa cartão pela Panini, ambos com 192 páginas.

Estranhas Aventuras não tem nada a ver com o público infantil. Na verdade, ela propõe uma discussão essencial para nós, os adultos: afinal, qual é a natureza da verdade? Tem um ditado que diz que toda história tem três lados: o meu, o seu e o verdadeiro. Estranhas Aventuras apresenta todos eles: a história de Adam Stranger, que foi para outro planeta, se transformou em herói ao salvar esse mundo, voltou para a Terra e escreveu um livro sobre a experiência. A investigação sobre seus atos, que incluem rumores de crimes de guerra, o que leva a Liga da Justiça a iniciar uma investigação supervisionada pelo Batman e protagonizada pelo Senhor Incrível, que possui uma particularidade muito importante: ele é um dos personagens mais inteligentes do universo DC, e isso é fundamental para a história. E como tudo isso é contado pela mídia, que dá o status de herói para Adam Strange ao mesmo tempo em que desconfia da história que ele está contando.


Estranhas Aventuras
é uma história em quadrinhos que fala sobre construções de narrativas: a minha, a sua e de quem assiste a tudo isso. Mas, o que é a verdade? Verdade significa aquilo que está intimamente ligado a tudo que é sincero e verdadeiro. A verdade é, em suma, a ausência da mentira. A afirmação do que é correto, do que é seguramente certo e está dentro da realidade apresentada. Para a filosofia, é a correspondência, a adequação ou a harmonia passível de ser estabelecida, por meio de um discurso ou pensamento, entre a subjetividade cognitiva do intelecto humano e os fatos, eventos e seres da realidade objetiva.

Estranhas Aventuras questiona a verdade, mas não apenas ela. Tom King aborda um tema essencial para os nossos dias, e que transforma a realidade em que vivemos: a pós-verdade. Mas, o que é a pós-verdade? Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.

Tudo isso é mostrado através de uma narrativa dividida, que alterna presente e passado. O presente, mais realista, traz a arte realística de Mitch Gerards. O passado, idealizado, traz a arte de Doc Shaner, que homenageia a Era de Ouro dos quadrinhos, quando os super-heróis surgiram.


Tom King explicou o que pretendia com a história: “Estranhas Aventuras” é sobre algo fundamentalmente maior, mais profundo e mais obscuro, e tenta falar sobre a natureza da verdade e como nossas suposições sobre essa natureza podem nos separar”.

Estranhas Aventuras discute a verdade enquanto conversa com a realidade. Estamos divididos, vivemos divididos. Acreditamos no que queremos e no que conversa com nossas crenças, e isso, muitas vezes, está distante do que realmente aconteceu e está acontecendo. Moldamos a verdade para que ela esteja de acordo com nossas visões de mundo. E, quando somos confrontados com qualquer coisa que esteja em desacordo com o que acreditamos, reagimos com raiva, ódio e descrença. A realidade é fundamental. Nela, somos confrontados e desafiados. E ela que nos faz crescer e evoluir. Ao abrir mão da verdade, ficamos estagnados em nossas próprias bolhas, vivendo encapsulados em realidades imaginárias lado a lado com outras realidades igualmente inventadas.

Tom King acertou em cheio: é realmente uma estranha aventura essa tal de verdade.


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