Madonna e o pós-11 de setembro no conceitual American Life


Em 11 de setembro de 2001, as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, foram atingidas por dois aviões de passageiros e desabaram logo em seguida, matando milhares de pessoas em um atentado transmitido ao vivo para todo o mundo. A reação do governo norte-americano foi proporcional à perda chocante de quase três mil pessoas no ataque, com iniciativas que foram, compreensivelmente, apoiadas pela maioria da população do país, mergulhada em um clima de desolação e paranoia e tentando encontrar maneiras de se recuperar do profundo impacto que o atentado teve na sociedade do país. Entre essas ações estava a escalada do confronto com Saddam Hussein, então presidente do Iraque. George W. Bush, presidente dos Estados Unidos na época, ordenou um ataque ao país do Oriente Médio em 20 de março de 2003, dando início à Guerra do Iraque treze anos após o seu pai, o ex-presidente americano George Bush, começar a Guerra do Golfo no início de agosto de 1990.

O que isso tem a ver com Madonna? Não só a cantora, mas uma parcela considerável dos norte-americanos, começou a questionar o american way of life, o sonho americano e a cultura do país, onde as armas e a indústria da guerra sempre possuíram um papel de destaque. Esses questionamentos foram transformados em música e geraram American Life, seu nono álbum, trabalho que é fruto direto da atmosfera pós-11 de setembro na sociedade americana e na vida da própria artista. Ninguém passou incólume aos ataques, e Madonna não foi uma exceção.

Liricamente, as letras de American Life trazem críticas ao materialismo, à obsessão pelo sucesso, ao individualismo, ao armamentismo e ao modo de vida norte-americano, o que, vindo de quem cantou “Material Girl” duas décadas antes, não deixa de ser irônico. O disco é apontado como um trabalho conceitual devido ao conteúdo de suas letras e a todo o conceito visual que o acompanhou, com Madonna posando na capa como uma guerrilheira pronta para o confronto, em uma imagem inspirada na clássica fotografia intitulada Guerrillero Heroico, a mais conhecida de Che Guevara, revolucionário e guerrilheiro argentino que foi um dos líderes da Revolução Cubana ao lado de Fidel Castro.

Musicalmente, o que se ouve nas onze faixas de American Life é um aprofundamento no experimentalismo eletrônico apresentado no trabalho anterior, Music (2000), disco que deu início à parceria de Madonna com o DJ e produtor francês Mirwais Ahmadzaï, o grande responsável pela sonoridade única desses dois discos. Se em Music a colaboração criativa entre ambos gerou um hit planetário com “Music”, em American Life o que ouvimos é algo ainda mais único e singular, poucas vezes apresentado por uma artista pop da magnitude de Madonna. É tudo muito inovador e diferente, com arranjos, andamentos e sons que grande parte dos fãs da artista não estavam acostumados a ouvir.

Basta juntar todos os elementos dessa equação – letras críticas, imagem provocadora, sonoridade diferente – e aplicar esses ingredientes ao clima dos EUA na época para perceber, sem muito esforço, que o álbum tinha tudo para não ser muito bem recebido. E realmente não foi. American Life foi lançado em 21 de abril de 2003, um mês após o início da Guerra do Iraque, e, ainda que não tenha alterado nada de seu conteúdo lírico e estético, Madonna achou por bem não lançar a ideia original do clipe da música-título, optando por uma versão bem mais suave da ideia original.


Dirigido pelo sueco Jonas Åkerlund, o mesmo do vídeo de “Music”, o clipe de “American Life” só foi divulgado recentemente e traz Madonna criticando a cultura da imagem e a indústria da guerra em um roteiro que apresenta modelos desfilando com roupas inspiradas em trajes militares e, à medida que o desfile vai se desenvolvendo, começam a ganhar a companhia de imagens reais de guerra, além de atores infantis com traços e roupas árabes, que são devidamente intimidados pelos “soldados” que estão na passarela, para delírio do público. O êxtase da audiência do desfile, repleta de sósias de nomes famosos, chega ao auge quanto a própria Madonna invade a passarela em um carro militar, ataca os paparazzi com um canhão de água e é seguida por uma chuva de membros decapitados dos soldados que estão na guerra, o que leva o público à loucura. Uma crítica claríssima e muito bem feita, mas que acabou sendo deixada de lado na época em uma decisão que, vista em retrospectiva, se revelou acertada. Basta ver o que aconteceu com a carreira do trio country Dixie Chicks, cujas integrantes deram declarações fortes criticando Bush e tiveram a sua carreira profundamente afetada ao serem incluídas em uma lista negra de desafetos do governo, o que fez com que suas músicas fossem boicotadas nas rádios, recebessem críticas de outros músicos e personalidades e, inclusive, ameaças de morte. O impacto foi tão profundo que o trio teve que mudar de nome e hoje se apresenta com The Chicks. Madonna não queria correr o mesmo risco.

Com a produção dividida entre a cantora e Mirwais, American Life é um álbum que ganhou ainda mais força com o tempo. O que soava estranho em 2003 hoje é o seu maior trunfo, com canções que parecem ter acabado de sair do estúdio. Os timbres não envelheceram, os arranjos mantém o seu frescor e unem-se de forma precisa com o domínio da melodia, característica onipresente na obra de Madonna. E, ainda que o rap no final da faixa que batiza o disco tenha sido duramente criticado na época do lançamento, ele seguiu a mesma abordagem ostentação que era comum no período. Mirwais é um artista no estúdio, construindo batidas cativantes e adornando-as com “barulhinhos” fora do habitual, que ao serem unidos com instrumentos acústicos – o que é uma constante no álbum – constroem uma alquimia sonora incrível e que pode ser ouvida em faixas como “Hollywood” e “Love Profusion”.

Os destaques de American Life são muitos, começando com a música que dá nome ao disco. Uma das grandes canções da carreira da Madonna, “American Life” já mostra a abordagem folktrônica que alguns jornalistas notaram no disco, com a presença de violões ao lado de batidas eletrônicas. Essa mesma característica é percebida em “Hollywood”, cuja sequência de notas acústicas da introdução foi ligada automaticamente ao Red Hot Chili Peppers, mas que se destaca, na verdade, pelas inspiradas melodias vocais de Madonna, que são extremo bom gosto, com uma interpretação que parece propositalmente contida – a exceção se dá na parte final, onde a Rainha do Pop arrisca outro rap. A letra de “Hollywood” critica a ganância que permeia Hollywood, lar do cinema bilionário e onde a imagem e atitude importam mais do que qualquer coisa.


A guitarra de Monte Pittman, ex-Prong e integrante da banda de Madonna desde 2000, introduz e conduz “I’m So Stupid”, que ficou marcada pelo uso de efeitos eletrônicos que deixaram a vocal extremamente metalizado em um pequeno trecho na parte inicial da música. Mas, tirando esse detalhe, a faixa se desenvolve de forma ascendente com boas melodias, até explodir no refrão, onde Madonna solta a voz. A balada “Love Profusion” é uma das músicas mais fortes de American Life, e não por acaso foi lançada como single e ganhou um belo clipe. A letra cita a frase “I’ve got you under my skin”, citando a composição de Cole Porter de 1936, imortalizada na voz de Frank Sinatra. “Nobody Knows Me” vem a seguir e é uma das mais fortes do álbum, com uma letra confessional e uma batida absolutamente contagiante, com a canção crescendo de forma soberba no refrão. Os vocais também possuem efeitos eletrônicos, porém bem menos intensos do que o trecho de “I’m So Stupid”.

A balada “Nothing Fails” é um dos momentos mais contemplativos do disco, com direito a um coral gospel que encorpa sua parte final. “Intervention” mantém a atmosfera reflexiva e “X-Static Process” vai na mesma linha, essa última sendo uma das mais belas canções da discografia de Madonna, com lindos vocais e harmonias sobre um dedilhado acústico. De arrepiar! Ela e “Nothing Fails” são parcerias com Stuart Price, músico e produtor inglês que foi o diretor da Drowned World Tour, de 2001, e que teria papel central no sucessor de American Life, o ótimo Confessions on a Dance Floor (2005).

A autobiográfica “Mother and Father” fala da relação da cantora com seus pais. A mãe morreu em 1963, de câncer, quando Madonna tinha apenas 5 anos de idade, e o pai foi fundamental na sua formação musical, matriculando-a ainda criança em aulas de piano clássico e balé. Apesar do conteúdo lírico, “Mother and Father” fica em segundo plano em relação às demais faixas do tracklist.


Lançada antes do álbum como canção tema do filme 007 – Um Novo Dia para Morrer (2002), onde ela faz uma rápida participação, “Die Another Day” é um dos exemplos mais instrutivos da abordagem musical de Mirwais, com o uso de violinos conduzindo a canção de forma minimalista, onde a linha vocal grudenta de Madonna ganha amplitude com as batidas eletrônicas. Música sensacional, uma aula prática de como usar os recursos de estúdio e que também chamou atenção devido ao clipe, que traz a artista em coreografias de luta e cenas de tortura que chocaram os mais sensíveis.

“Easy Ride”, parceria com o guitarrista Monte Pittman, fecha o álbum de maneira bem emocional e é mais uma das pérolas escondidas em seus álbuns e que acabam sendo esquecidas pelos ouvintes ocasionais. Linda canção, com uma interpretação vocal sensacional de Madonna explorando os timbres mais graves e profundos de sua voz.

American Life não teve o impacto que deveria devido a todo o contexto que cercou o álbum na época do seu lançamento. Mesmo assim, vendeu mais de 6 milhões de cópias em todo o mundo e chegou ao primeiro lugar da Billboard, além de liderar a parada em diversos países. Musicalmente é um trabalho que revela-se ainda refrescante e cativante, enquanto o discurso de suas letras mostrou-se profético, como ficou claro com a eleição de Donald Trump em 2016.

Um álbum corajoso, inovador e revolucionário de uma das maiores artistas da história da música pop, que nunca teve medo de criticar o que achava que deveria ser criticado e fez isso mais uma vez em American Life.


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