Explorando a dor e mergulhando no prog, Angra soa renovado em Cycles of Pain


Lançado em 3 de novembro, Cycles of Pain é o décimo álbum do Angra e o primeiro a repetir a mesma formação em dezessete anos, desde Aurora Consurgens (2006), o canto do cisne de um dos line-ups mais celebrados do grupo, aquele com o trio Edu Falaschi, Felipe Andreoli e Aquiles Priester ao lado dos fundadores Kiko Loureiro e Rafael Bitencourt. Em Cycles of Pain, apenas Bitencourt e Andreoli seguem no time, agora ao lado de Fabio Lione, Marcelo Barbosa e Bruno Valverde.

Produzido por Dennis Ward – o mesmo dos aclamados Rebirth (2001) e Temple of Shadows (2004), além do já citado Aurora Consurgens -, Cycles of Pain apresenta treze faixas e traz a banda soando muito pesada e técnica, características que foram intensificadas nos trabalhos recentes do quinteto, como bem mostraram Secret Garden (2014) e ØMNI (2018). O disco traz as participações especiais de Lenine (em “Águas Secas), Vanessa Moreno (em “Tides of Changes – Part II” e “Here in the Now”) e Amanda Somerville (em “Tears of Blood”, ao lado da pianista Juliana D’Agostini), além de Kiko Loureiro e Fernanda Lira na faixa bônus da edição japonesa, que é uma versão speed metal para “Tears of Blood”. O álbum foi lançado no Brasil em CD pela Voice Music em uma edição slipcase com pôster, além de uma versão em LP duplo colorido pelo coletivo de gravadoras Gran Cartel.

Não compartilho da opinião de que o Angra soa acomodado ou repetitivo em Cycles of Pain como li em alguns reviews, principalmente escritos por jornalistas brasileiros. A banda faz no novo álbum o que sempre fez em toda a sua carreira: anda para frente, olha para o futuro. Traduzindo: não se repete, tenta algo novo, experimenta. Terceiro trabalho com a voz de Fabio Lione, Cycles of Pain é claramente distinto dos dois anteriores com o vocalista italiano, Secret Garden e ØMNI, e também soa diferente de todos os discos já lançados pelo quinteto. Tendo como principais figuras criativas a dupla Rafael Bitencourt e Felipe Andreoli, o Angra soa em 2023 como uma banda renovada e que segue se desafiando, e o resultado disso se traduz em um álbum onde o power metal de outrora aparece de forma tímida (o que é um acerto) e é colocado em segundo plano por uma sonoridade que alia técnica e o domínio de melodia sempre presente nas composições de Bitencourt, aqui colocadas em um nível superior pela execução primorosa de todos os músicos, notadamente o baterista Bruno Valverde e o próprio baixo de Andreoli.

Há sempre quem analise a fase Lione no Angra de forma preguiçosa, apontando uma semelhança demasiada com o Rhapsody, ex-banda do cantor. Isso nunca esteve tão longe da verdade como está em Cycles of Pain. Não há nada que se assemelhe à banda italiana no disco, talvez apenas o fato de “Ride Into the Storm” ser a canção mais power metal do trabalho, mas mesmo assim seguindo um caminho que passa longe do metal épico e cinematográfico do Rhapsody. Querer associar as duas bandas me parece uma mistura de má fá, desconhecimento e falta de repertório para perceber o quanto os dois grupos estão a milhas de distância um do outro.

Ao afastar seu som do metal melódico e levar sua música para algo mais próximo do metal progressivo, o Angra se afasta da mesmice e da repetição de fórmulas que marcaram os anos recentes do power metal, que vive tempos de inegável estagnação criativa. A mistura do Angra em Cycles of Pain inclui também os sempre presentes elementos de música brasileira e sutis ingredientes eruditos, características que estão presentes desde o primeiro disco, o clássico Angels Cry (1993). Essa receita foi aprimorada em toda a carreira do quinteto e principalmente nos dois álbuns anteriores, e soa mais azeitada do que nunca em Cycles of Pain, que traz doses cavalares do que pode ser definido como metal progressivo.

O álbum, apesar de não ser conceitual, tem um tema central: os ciclos da dor exemplificados no título. E eles se relacionam com eventos vividos pelos integrantes e relacionados com a história da própria banda, como as mortes do pai de Rafael Bitencourt e do ex-vocalista Andre Matos. De forma mais ampla, o tema conversa também com os anos complicados vividos pela humanidade nos últimos tempos, notadamente o 2020 repleto de perdas e caos devido ao coronavírus. As músicas transparecem essa emoção, em doses maiores ou menores, notadamente através das sempre marcantes interpretações de Fabio Lione (o italiano é uma força da natureza) e do uso de melodias constantes.

Entre as músicas, merecem destaque a abertura com “Ride Into the Storm”, composição pesada e que se inscreve facilmente como uma das melhores músicas gravadas pela banda nos anos recentes, além de “Tide of Changes Part II” (com andamento mais cadenciado e uma parte final que é um deleite para quem gosta de trechos instrumentais intricados), “Vidas Secas” (que bebe na tradição de unir metal com música brasileira), os solos sensacionais de “Gods of the World”, a contemplativa e grandiosa música título (uma espécie de “Rebirth” dessa formação) e os andamentos super quebrados e inspirados em música brasileira de “Faithless Sanctuary”, onde Bruno Valverde mostra porque é um dos bateristas mais celebrados da atualidade. O ponto negativo vai para “Tears of Blood”, com a participação de Amanda Somerville, que soa como uma pouco inspirada tentativa de fazer algo na linha do metal sinfônico de bandas como Nightwish e Epica.

Explorando a dor e mergulhando no prog metal, o Angra soa renovado em Cycles of Pain, e isso é uma conquista para uma banda como o quinteto brasileiro, na estrada há mais de três décadas e sempre lutando para continuar relevante, apesar das constantes mudanças de formação. Rafael Bitencourt, Felipe Andreoli e companhia conseguiram fazer isso, e mostram que o Angra ainda tem muito a mostrar, ensinar e inspirar não só os fãs e outras bandas, mas sobretudo quem curte composições bem elaboradas e primorosamente executadas.


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