Quadrinhos: Bouncer – Primeiras Histórias, de Alejandro Jodorowsky e François Boucq (2024, QS Comics)


Bouncer é um faroeste atípico. A obra criada pela dupla Alejandro Jodorowsky e François Boucq em 2001 contrasta com a abordagem clássica, romântica e quase poética de Tex e outras referências do gênero ao apresentar um universo repleto de tragédia e doses generosas de violência, tudo embalado por uma grandiosidade épica. O quadrinho teve o seu primeiro volume publicado na França em 2001 e chegou ao Brasil apenas em 2024, mais de duas décadas depois, e em dose dupla, pelas mãos das editoras QS Comics e Comix Zone.

A HQ de Jodorowsky e Boucq possui, até o momento, doze volumes publicados entre 2001 e 2023. Os sete primeiros saíram no mercado francês pela editora Les Humanoïdes, e os seguintes chegaram às livraras franco-belgas pela editora Glénat. A divisão editorial da publicação original também se repetiu no Brasil, visto que a primeira metade da série foi adquirida pela QS, enquanto os volumes mais recentes foram comprados pela CZ.

Bouncer: Primeiras Histórias reúne os sete primeiros volumes da saga em uma espécie de omnibus com 432 páginas, capa dura, formato 21,7x29,3 e papel offset de alta gramatura, com tradução de Carol Pimentel e adaptação de Rodrigo Guerrino. A edição traz os três primeiros arcos completos da história do personagem principal e que dá nome à série. Nascido em uma família disfuncional e marcada pela violência, desde cedo Bouncer precisou lutar para sobreviver tanto enfrentando desafios externos quanto dentro do seu próprio núcleo familiar, o que o transformou em um indivíduo duro e cascudo além de deixar marcas em seu corpo, já que ele perdeu um dos braços nesse processo. Com o passar dos anos, assume empregos variados que vão de assassino a carrasco, estabilizando-se como segurança de um saloon (o significado original de “bouncer” em inglês é segurança, leão de chácara). A leitura apresenta toda essa transformação.


O arco inicial de Bouncer: Primeiras Histórias traz os dois primeiros volumes da série, intitulados Um Diamante Para o Além e A Misericórdia dos Carrascos, em que Jodorowsky e Boucq apresentam a origem do personagem e constroem o universo em que ele está inserido, tanto através de sua história quanto pela concepção visual e estética da obra. O roteiro de Jodorowsky, como de hábito, faz uso de personagens marcantes e muitas vezes com concepções peculiares e um tanto exageradas, o que resulta em uma realidade em que indivíduos estranhos e fora dos padrões são figuras frequentes – como o próprio protagonista, que afinal de contas é um pistoleiro que não tem um dos braços. A arte de Boucq é grandiosa e eloquente, apresentando o velho oeste como um dos personagens determinantes da obra através de paisagens belas e intimidadoras, que mostram como a vida de homens, mulheres e crianças nos Estados Unidos do final do século XIX era difícil e cheia de desafios. Além disso, os figurinos concebidos por Boucq chamam a atenção, com o uso frequente de trajes mais elaborados e até mesmo mais pomposos daqueles que vemos em outras obras referenciais do faroeste em quadrinhos, como é o caso do já citado Tex.

O período em que as histórias de Bouncer acontecem se dá logo após o final da Guerra Civil Americana, que aconteceu entre 1861 e 1865 e teve como tema central a escravização dos negros, com as forças do norte do país (a União) lutando pelo fim de escravidão previsto na constituição do país, e as forças do sul, (os Confederados), que defendiam a manutenção da escravidão. É importante citar isso porque em vários momentos de Bouncer o tema vem à tona, seja através de grupos de soldados sulistas que não aceitam o resultado da guerra ou até mesmo pela forma como negros e outros povos em oposição aos brancos, notadamente os índios, são tratados. Jodorowsky não se furta de apresentar o preconceito e a forma jocosa como muitos brancos tratavam esses povos, ao mesmo tempo que retrata os índios como uma nação sábia e forte, ciente de suas próprias tradições e costumes. O contraste entre as visões de mundo dos brancos e dos índios é um dos fios condutores da história.


O segundo arco reúne os volumes três, quatro e cinco da série, intitulados A Justiça das Serpentes, A Vingança do Maneta e A Presa dos Lobos, e é um grande épico de vingança. Aqui temos a parte mais longa da edição da QS Comics, uma história que exemplifica de forma crua e sem filtros como se dava a disputa de terras no velho oeste, onde o sangue era uma moeda de troca tão frequente e muitas vezes mais usada que o próprio dinheiro. E a parte final, com os volumes A Viúva-Negra e Dois Corações, mantém o nível elevado da obra com uma trama em que Bouncer se vê envolvido em uma teia amorosa repleta de surpresas.

Percebe-se de forma clara ao longo da obra a evolução da escrita de Alejandro Jodorowsky, com os arcos ficando mais complexos e cheios de reviravoltas e surpresas, mas sempre mantendo os elementos frequentes de seu estilo como personagens outsiders, concepções visuais peculiares e uma forte tendência para o inesperado. Em relação à arte de François Boucq, os primeiros volumes me incomodaram um pouco pela semelhança exagerada das faces de vários personagens (não só os da família de Bouncer, o que é completamente compreensível), algo que ele corrige com o tempo. No entanto, as paisagens grandiosas e muitas vezes amedrontadoras do velho oeste enchem os olhos desde as primeiras páginas, com um trabalho de ilustração do mais alto nível.



A edição traz como extras um posfácio que destrincha as influências de William Shakespeare presentes em Bouncer, além de uma galeria belíssima com artes de François Boucq.

Bouncer: Primeiras Histórias é uma edição que faz jus à grandiosidade do faroeste de Jodorowsky e Boucq, apresentando alto acabamento gráfico e um cuidado editorial primoroso. Pessoalmente, apesar de achar a capa bonita, usaria outra ilustração nessa posição, justamente a arte que está logo depois das guardas na edição brasileira. Além disso, penso que a lombada poderia ter sido melhor elaborada, talvez com uma textura de fundo que a deixasse mais atraente. Mas essas são observações apenas de cunho pessoal, porque a qualidade deste material é sensacional e a história vale muito a pena, principalmente por apresentar uma abordagem diferente da que estamos acostumados a encontrar em quadrinhos de faroeste.


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