Decadência, de Inio Asano: a indústria criativa sob o olhar de quem está desmoronando (2023, Editora JBC)
Decadência, do consagrado mangaká Inio Asano (Boa Noite Punpun, Heroes, Solanin, Dead Dead Demons Dededede Destruction), é uma obra desconfortável e profundamente humana. Em um único volume, Asano nos entrega um retrato cruel da decadência emocional de um autor de sucesso, expondo as rachaduras entre a imagem pública de um criador e sua verdadeira identidade. O protagonista, Fukazawa, é o epicentro desse colapso: um homem que, embora tenha produzido uma obra celebrada por muitos, se mostra pessoalmente cínico, apático e muitas vezes desagradável.
Fukazawa representa o paradoxo do autor idealizado. Aos olhos do público, ele é um símbolo de inspiração, talento e impacto. Um de seus leitores chega a lhe agradecer por ter evitado o suicídio graças à sua obra — um feito que poderia ser o ápice para qualquer artista. No entanto, ao nos aproximarmos da sua vida íntima, Asano desconstrói essa figura admirada. O verdadeiro Fukazawa é emocionalmente instável, desinteressado nas relações humanas e tomado por um niilismo corrosivo. Há um evidente desgaste entre o que ele cria e quem ele é — um conflito que Asano explora com brutal honestidade.
Essa tensão entre o autor que o público quer enxergar e o ser humano que ele de fato é revela a crítica central da obra: a indústria (e o público) costuma projetar expectativas irreais sobre criadores, ignorando sua complexidade, sofrimento e humanidade.
Outro pilar da obra é a denúncia do esvaziamento da criatividade em nome da produtividade. Fukazawa não sabe mais o que deseja escrever — não porque lhe faltam ideias, mas porque lhe falta sentido. O mercado exige dele “mais do mesmo”, algo que venda, que siga fórmulas comprovadas. Sua editora cobra continuidade de uma fórmula de sucesso, mesmo que isso custe sua saúde mental. Ao invés de incentivo à inovação ou apoio à sua crise existencial, o que ele recebe é pressão para continuar produzindo.
Inio Asano, que tem uma relação conhecida com os altos e baixos da indústria editorial japonesa, se vale de Decadência como um manifesto sutil (e pessoal) contra essa lógica desumanizante. A criatividade, aqui, é uma engrenagem de um sistema industrial que valoriza números, rankings e volumes vendidos — não a integridade do autor ou a originalidade da obra.
No contato com personagens como Chifuyu — uma acompanhante que se torna um breve ponto de fuga emocional — Fukazawa experimenta momentos de humanidade que contrastam com sua apatia generalizada. Ainda assim, mesmo essas conexões são atravessadas por sua frieza e desilusão. Ele não quer ser salvo nem salvar ninguém. Ele apenas assiste ao seu próprio declínio com uma mistura de ironia e conformismo.
Decadência é uma obra que exige maturidade emocional do leitor. Não há grandes viradas, redenção ou esperança. O que existe é o retrato de um homem despido da aura artística, engolido por um sistema que transforma o ato criativo em obrigação. Inio Asano provoca uma reflexão não apenas sobre o sofrimento criativo, mas também sobre nossa tendência de consumir obras e esquecer dos criadores. Fukazawa não é um herói, tampouco um mártir — é apenas um homem em ruína, cuja decadência nos obriga a encarar o que há por trás da cortina da fama.
A edição brasileira, publicada pela editora JBC, tem 256 páginas impressa em papel pólen, traz orelhas com textos informativos, artes belíssimas nas guardas e um marcador de páginas exclusivo. A tradução é de Renata Leitão.
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