Obra mais recente de Charles Burns, Final Cut é a síntese madura e inquietante de temas que o autor norte-americano vem desenvolvendo ao longo de sua carreira. Publicada no Brasil pela DarkSide em uma luxuosa edição de capa dura, a HQ é uma exploração visual e emocional do poder da arte — e de seus limites — frente à fragilidade humana.
Protagonizada por Brian, um jovem introspectivo que busca expressar sua criatividade por meio de filmes caseiros, a narrativa gira em torno da relação intensa e silenciosa que ele estabelece com Laurie, sua musa e atriz. Enquanto Brian tenta capturar uma espécie de versão idealizada do amor através da lente da câmera, a realidade escapa por entre os dedos — seja na forma de desejos não correspondidos, seja na incapacidade de lidar com o mundo fora do universo que ele mesmo cria.
Burns constrói essa jornada com uma linguagem visual precisa, marcada por linhas limpas e sombras densas, evocando simultaneamente os quadrinhos europeus de linha clara e o expressionismo do cinema noir. A estética serve como extensão da psique do personagem, onde cada quadro parece meticulosamente calculado para expressar não apenas a cena, mas o desconforto que ela carrega.
A atmosfera onírica e o ritmo fragmentado são elementos
centrais da obra. Há saltos temporais, sobreposições entre sonho e realidade, e
uma constante sensação de que nada está totalmente ao alcance do leitor — nem
mesmo do protagonista. Essa ambiguidade não é um problema, mas uma escolha
estética que amplifica o desconforto emocional da história. A construção
narrativa remete ao cinema de David Lynch e à literatura de Kafka: tudo parece
lógico à primeira vista, até que o encadeamento dos fatos revela sua
instabilidade.
A edição publicada DarkSide está à altura da densidade gráfica da obra. Com formato grande (21 x 28,5 cm), impressão excelente em papel offset de alta gramatura e capa dura, valoriza a arte de Burns em todos os detalhes. A tradução de Bruno Dorigatti mantém o ritmo e a estranheza da linguagem original, respeitando os silêncios e o fluxo psicológico do texto. É uma edição pensada para colecionadores e leitores exigentes, que buscam não apenas uma boa história, mas também uma experiência estética completa.
“Capturar tudo que está acontecendo na minha cabeça”: esse desejo de Brian ecoa o impulso criativo de Burns. Em Final Cut, a arte aparece como tentativa de controlar o caos interno, mas também como barreira que impede a vivência plena do mundo real. Laurie nunca é verdadeiramente compreendida por Brian porque ele prefere a versão que inventa dela nos filmes. Assim, o quadrinho revela o limite entre expressão e evasão, entre criação e frustração.
Ao final da leitura, fica a sensação de um filme interrompido no meio do rolo — não por erro, mas porque seu desfecho está fora da tela. Está em nós.
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