Shintaro Kago é um desses autores que parecem existir fora do tempo. Seu trabalho habita uma zona onde o grotesco, o humor e o absurdo colidem em espasmos de genialidade e desconforto. Em Dano Cerebral, publicado no Brasil pela Comix Zone, o artista japonês reúne quatro histórias curtas — Labirinto em Quatro, Quarto Amaldiçoado, Retrato de Família e Colheita de Sangue — que condensam tudo o que faz dele uma figura tão única dentro do mangá contemporâneo.
Conhecido como um dos expoentes do ero-guro nansensu (termo que combina erotismo, grotesco e nonsense), Kago bebe da mesma fonte que autores como Suehiro Maruo e Toshio Saeki, mas sua abordagem é mais metalinguística e caótica. Enquanto Maruo evoca o erotismo decadente e o fetichismo da morte, Kago prefere o labirinto: desmonta o corpo humano, a narrativa e até a lógica visual da página, como se cada quadrinho fosse uma autópsia do próprio mangá.
As quatro histórias de Dano Cerebral funcionam quase como variações sobre um mesmo tema: o colapso entre o humano e o absurdo. Em Labirinto em Quatro, há uma atmosfera de mistério e deslocamento que lembra os melhores momentos de David Lynch — uma trama que se dobra sobre si mesma, misturando espaço físico e mental até que o leitor perca qualquer noção de orientação. Quarto Amaldiçoado e Retrato de Famíia brincam com o horror doméstico, mas distorcem completamente a ideia de lar, família e corpo. Já Colheita de Sangue é pura demência visual: um delírio que mistura gore e humor negro, com a ironia fria que é marca registrada do autor.
O traço de Kago é milimétrico, meticuloso e quase clínico, o que torna o grotesco ainda mais perturbador. Há uma estranha beleza nas linhas limpas com que ele representa vísceras, rostos mutilados e distorções espaciais. Tudo é organizado com precisão cirúrgica, o que amplifica o impacto do caos que retrata. É como assistir a um cirurgião sorrindo enquanto o mundo desaba em volta.
A edição da Comix Zone vem com 192 páginas em papel pólen bold e acabamento de luxo (capa com sobrecapa e verniz localizado), e inclui um marcador de páginas. A tradução de Drik Sada mantém o tom estranho e por vezes cômico do texto original, preservando o equilíbrio delicado entre o absurdo e o horror.
Comparado a outras obras do autor, como Dementia 21 ou Anamorfose, Dano Cerebral é mais direto, menos alegórico. Kago aqui parece mais interessado em experimentar formas e sensações do que em propor comentários sociais. Ainda assim, há um incômodo constante — uma sensação de que o corpo e o mundo estão prestes a se desfazer a qualquer instante.
Dano Cerebral é um mergulho na mente de um artista obcecado por desmontar tudo o que é sólido: o corpo, o espaço, a narrativa e a sanidade. É um mangá que não busca agradar, mas provocar. Um colapso em forma de quadrinhos — e, paradoxalmente, uma das experiências mais visualmente belas que o horror pode oferecer.
Comentários
Postar um comentário
Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.