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Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: Mythos Editora republica as edições 46 a 50 da série, a obra-prima silenciosa de Giancarlo Berardi


Poucas séries no quadrinho europeu conseguem manter, ao longo de décadas, a combinação de rigor técnico, densidade emocional e qualidade narrativa que Júlia – Aventuras de uma Criminóloga apresenta desde 1998. Criada por Giancarlo Berardi, o mesmo autor por trás de Ken Parker, a HQ é um marco do policial contemporâneo — elegante, cerebral e profundamente humano. Nada nela é exagerado, estilizado ou espetacularizado. Em Júlia, o crime não é entretenimento: é consequência, trauma, ambiente e motivação.

Júlia Kendall, a protagonista, foi pensada como uma criminóloga realista, longe de arquétipos heroicos. O visual inspirado em Audrey Hepburn ajuda a sublinhar esse caráter mais discreto, mas é o método — e não a aparência — que define a personagem. Júlia trabalha analisando comportamento, padrões emocionais, coerência das ações, evidências físicas e contexto social. O resultado é uma série que muitas vezes se aproxima mais de um estudo de caso do que de uma aventura policial convencional.

Agora, a Mythos Editora acaba de republicar no Brasil as edições 46 a 50, um bloco que sintetiza muito do que torna Berardi um roteirista singular. Essas edições já haviam saído aqui entre setembro de 2008 e janeiro de 2009 na primeira edição brasileira da revista da personagem, publicada pela Mythos em formatinho e em papel jornal. Agora, estão sendo republicadas no formato original italiano e em papel offset. São histórias que exploram a mente humana sem pressa, investigam as engrenagens do crime e nunca subestimam o leitor. 


Júlia #46 – A Morte é uma Mulher

A edição parte de uma série de crimes motivados por uma vingança pessoal. Berardi examina a dinâmica emocional entre vítimas, suspeitas e contexto, construindo um estudo sobre como diferentes experiências moldam comportamentos — e, potencialmente, ações criminosas. A narrativa é mais silenciosa, baseada em nuances. É aquele tipo de caso em que não há grandes explosões, mas há um raciocínio refinado conduzindo cada passo.


Júlia #47 – Sangue no Quarto 3

Um dos casos mais tensos desse período da série. Marcus Hart desperta ao lado de um corpo e tudo aponta para ele — uma situação que, nas mãos de um roteirista menos preocupado com método, renderia um thriller raso. Aqui, não. Berardi desmonta as evidências, analisa cronologias possíveis, estuda o comportamento emocional do suspeito e reestrutura a lógica do crime. É um episódio exemplar da proposta de Júlia: mostrar que investigação é, antes de tudo, pensamento.


Júlia #48 – O Homem de Buenos Aires

Esta edição amplia o escopo. Berardi conecta o presente a traumas históricos, ditaduras e feridas que atravessam gerações. A história examina culpa, memória e identidade, explorando como o passado molda indivíduos a ponto de influenciar comportamentos extremos. Não é exagero dizer que, em muitos momentos, Júlia aqui se aproxima mais do drama psicológico do que do policial — e talvez seja por isso que funcione tão bem.


Júlia #49 – O Pesadelo da Porta ao Lado

O caso começa simples, mas, como quase sempre acontece em Júlia, a superfície engana. A edição investiga motivações — talvez o elemento mais importante da criminologia moderna — e mostra como conflitos íntimos, tensões emocionais e identidades escondidas podem gerar um crime que, visto sem método, pareceria inexplicável. Berardi trabalha com um cuidado raro: nada é gratuito, nada é descartável.


Júlia #50 – Uma Mulher em Pedaços

A mais impactante do conjunto. A morte brutal de Marieva Guerrero leva Júlia a um mergulho em temas como tráfico humano, exploração de imigrantes e violência sistemática. É uma história dura, sem concessões, guiada por evidências forenses, padrões criminais e análise comportamental de predadores que operam às margens da sociedade. Berardi trata o tema com respeito e precisão, evitando sensacionalismo, algo que muitos quadrinhos policiais simplesmente não conseguem fazer.

As cinco edições recém-lançadas pela Mythos Editora mostram o que diferencia Júlia no gênero policial:

·         Método rigoroso: nada acontece por acaso, tudo faz sentido dentro de uma lógica criminológica

·         Humanidade realista: a violência nunca é espetáculo, é consequência

·         Narrativas densas, mas acessíveis: Berardi confia no leitor, mas nunca complica à toa

·         Personagens tridimensionais: culpados e inocentes têm camadas, ambivalências e história

·         Investigação como leitura do mundo: não basta descobrir quem matou, é preciso entender por quê

Júlia nunca foi uma série de explosões, perseguições ou frases de efeito. É uma HQ construída na observação — do detalhe, do gesto, da contradição e da dor. Um trabalho que se aproxima, às vezes, do romance noir. Outras vezes, de um manual narrativo de criminologia aplicada.

E talvez seja exatamente por isso que continue tão essencial.


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