Discoteca Básica Bizz #181: Erasmo Carlos - Carlos, Erasmo (1971)


A composição genética da milionária parceria Roberto e Erasmo Carlos não é o que se pode chamar de divisão igualitária - o primeiro ficou com o mito, com a multidão e a gritaria, ao outro restou o risco e o status de cult. Comparando a carreira dos dois amigos, fica claro que tudo o que o Rei levou às paradas já havia sido testado pelo Tremendão. Iê-iê-iê romântico, temas religiosos, MPB velha guarda, soul, funk, música de motel: qualquer uma destas e muitas aventuras mais, Erasmo experimentou antes, como o operário da música que sempre foi, cheio de simpatia, convicção e entusiasmo.

O início dos anos 1970 ajudou a intensificar a diferença entre ambos. A Jovem Guarda já era passado e, enquanto Roberto partia para um público adulto, ganhando ares de artista sério e respeitado até pelo Pasquim, Erasmo se viu sem gravadora, sem programa na TV e sem hits nas rádios. Aproveitou para cair na vida - conheceu as drogas, o álcool, a mulherada - "só em quantidade", como admitiu depois. Foi quando surgiu o convite para integrar o elenco da Phonogram (mais tarde Polygram e atual Universal Music), com liberdade absoluta para compor e gravar o que bem entendesse. Erasmo cercou-se dos melhores músicos e técnicos da época e registrou Carlos, Erasmo, um disco que, a partir do título, servia como uma declaração de sua identidade, de suas ambições e possibilidades como artista.

Desde a faixa de abertura, "De Noite, Na Cama", de Caetano Veloso, fica claro que Erasmo havia crescido - um berimbau marcando o ritmo, uma guitarra espertíssima costurando a melodia, um piano herdado da pilantragem, uma rapaziada amiga fazendo o coro e ele com a voz encharcada de suavidade e segurança. A partir daí, o LP segue uma jornada aventurosa e radical, indo da balada cama-e-mesa de "Masculino, Feminino" ou da cacetada psicodélica de "Ninguém Chora Mais" para a apocalíptica "Sodoma e Gomorra" ou para o funkão "Mundo Deserto". Impossível não se impressionar ainda com os vertiginosos arranjos de cordas na pesadíssima "Dois Animais na Selva Suja da Rua" ou com a climática e hippie "Gente Aberta".


Nunca Erasmo arriscou tanto, nem se deu tão bem, quanto nesse seu sétimo álbum. Tais guinadas soam absolutamente imperceptíveis ouvindo o disco como um todo. Os arranjos musculosos, inteligentes e virtuosos do LP em nada lembram os temas pueris que os contemporâneos de Jovem Guarda continuaram gravando. Se o tropicalismo havia transformado o iê-iê-iê em coisa das antigas, Carlos, Erasmo conseguia soar ainda mais maduro e brutal que a própria Tropicália, jogando rock pauleira, folk, funk e soul à geléia geral - se valendo de vários tropicalistas como boa parte dos Mutantes, o guitar hero Lanny Gordin ou o maestro Rogério Duprat.

Como se as ousadias musicais não fossem poucas, até os vapores da cannabis foram tratados por Erasmo, na divertida "Maria Joana" - "eu quero Maria Joana", canta ele, maroto, sobre uma rumba lisérgica da Caribe Steel Band.

Além de Carlos, Erasmo, o Tremendão gravou vários discos básicos em sua carreir, como Erasmo Carlos & Os Tremendões (1969), Sonhos e Memórias (1972) e Banda dos Contentes (1976). Mas Carlos, Erasmo permanece como seu trabalho mais dinâmico, espiritualizado e intrincado, o melhor passaporte para se entender a genialidade de Erasmo como um dos maiores e mais subestimados nomes do pop brasileiro em todos os tempos.

Texto escrito por Ricardo Alexandre, Bizz #181, agosto de 2000

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