
A composição genética da milionária parceria Roberto e
Erasmo Carlos não é o que se pode chamar de divisão igualitária - o primeiro
ficou com o mito, com a multidão e a gritaria, ao outro restou o risco e o
status de cult. Comparando a carreira dos dois amigos, fica claro que tudo o
que o Rei levou às paradas já havia sido testado pelo Tremendão. Iê-iê-iê
romântico, temas religiosos, MPB velha guarda, soul, funk, música de motel:
qualquer uma destas e muitas aventuras mais, Erasmo experimentou antes, como o
operário da música que sempre foi, cheio de simpatia, convicção e entusiasmo.
O início dos anos 1970 ajudou a intensificar a diferença
entre ambos. A Jovem Guarda já era passado e, enquanto Roberto partia para um
público adulto, ganhando ares de artista sério e respeitado até pelo Pasquim,
Erasmo se viu sem gravadora, sem programa na TV e sem hits nas rádios.
Aproveitou para cair na vida - conheceu as drogas, o álcool, a mulherada -
"só em quantidade", como admitiu depois. Foi quando surgiu o convite
para integrar o elenco da Phonogram (mais tarde Polygram e atual Universal
Music), com liberdade absoluta para compor e gravar o que bem entendesse.
Erasmo cercou-se dos melhores músicos e técnicos da época e registrou Carlos,
Erasmo, um disco que, a partir do título, servia como uma declaração de sua
identidade, de suas ambições e possibilidades como artista.
Desde a faixa de abertura, "De Noite, Na Cama",
de Caetano Veloso, fica claro que Erasmo havia crescido - um berimbau marcando
o ritmo, uma guitarra espertíssima costurando a melodia, um piano herdado da
pilantragem, uma rapaziada amiga fazendo o coro e ele com a voz encharcada de
suavidade e segurança. A partir daí, o LP segue uma jornada aventurosa e radical,
indo da balada cama-e-mesa de "Masculino, Feminino" ou da cacetada
psicodélica de "Ninguém Chora Mais" para a apocalíptica "Sodoma
e Gomorra" ou para o funkão "Mundo Deserto". Impossível não se
impressionar ainda com os vertiginosos arranjos de cordas na pesadíssima
"Dois Animais na Selva Suja da Rua" ou com a climática e hippie
"Gente Aberta".

Nunca Erasmo arriscou tanto, nem se deu tão bem, quanto
nesse seu sétimo álbum. Tais guinadas soam absolutamente imperceptíveis ouvindo
o disco como um todo. Os arranjos musculosos, inteligentes e virtuosos do LP em
nada lembram os temas pueris que os contemporâneos de Jovem Guarda continuaram
gravando. Se o tropicalismo havia transformado o iê-iê-iê em coisa das
antigas, Carlos, Erasmo conseguia soar ainda mais maduro e brutal que
a própria Tropicália, jogando rock pauleira, folk, funk e soul à geléia geral -
se valendo de vários tropicalistas como boa parte dos Mutantes, o guitar hero
Lanny Gordin ou o maestro Rogério Duprat.
Como se as ousadias musicais não fossem poucas, até os
vapores da cannabis foram tratados por Erasmo, na divertida "Maria
Joana" - "eu quero Maria Joana", canta ele, maroto, sobre uma
rumba lisérgica da Caribe Steel Band.
Além de Carlos, Erasmo, o Tremendão gravou vários
discos básicos em sua carreir, como Erasmo Carlos & Os Tremendões (1969), Sonhos
e Memórias (1972) e Banda dos Contentes (1976). Mas Carlos,
Erasmo permanece como seu trabalho mais dinâmico, espiritualizado e
intrincado, o melhor passaporte para se entender a genialidade de Erasmo como
um dos maiores e mais subestimados nomes do pop brasileiro em todos os tempos.
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