Review: Inna de Yard- Soul of Jamaica (2017)



A música negra vem acompanhada, desde o berço, da marca do conflito entre as buscas do êxtase do divino e do transe carnal. Nos Estados Unidos da primeira metade do século XX nada ilustra melhor tal cisão que a divisão, presente desde sempre, entre o gospel e o blues. Dois mundos inconciliáveis cuja fronteira jamais deveria ser ultrapassada, sob a pena de se ter que lidar com acusações como as de "ter vendido a alma".

Mas se os negros americanos tiveram que lidar com a rejeição e virulência de seus pares de fé ao cruzarem a linha do profano e sagrado quando resolveram combinar a entrega mística do gospel ao prazer despudorado do pop (fazendo nascer a soul music e o funk), os brothers e sisters de um outro continente fizeram brotar uma nova e incendiária expressão musical a partir de uma união até então inédita dessas vertentes, sem maiores grilos de consciência. Combinando os cânticos da religião rastafari aos sedutores ritmos do ska e do rock steady, o reggae surgiu no final da década de 1960 como um abalo sísmico nas convenções da música pop.

Na verdade, talvez mais que qualquer outro gênero, o reggae tem mostrado desde sua gênese que sua artilharia estava apoiada exatamente na confluência excêntrica dessas duas fontes que eram à época, pelo menos no campo ideológico, aparentemente inconciliáveis: o ascender divino dos spirituals e o vigor rebelde próprio da juventude. Uma verve de inquietação sempre esteve presente no gospel, é verdade. Mas ela era antes de não conformidade e enfrentamento ao mundano (sempre no sentido de preservação de pureza espiritual) que de contestação a sistemas de ordem social e política.

No reggae, o questionamento da ordem social é intrínseco. Mas enquanto os olhos estão voltados para as injustiças e vilosidades permeadas pelo mundo, o corpo e o espírito são elevados como que num clímax sobrenatural. Décadas após seu nascimento, o gênero que não demorou a se popularizar até o ponto de se transformar num fenômeno de alcance de massa, já é monumento. Portanto, tentativas de "explicação" dessa história não se mostram estranhas.

É justamente um tipo de revisão história o que o álbum Soul of Jamaica tem a oferecer, só que de uma maneira particularmente singular. Inna de Yard, o coletivo responsável pelo trabalho, é formado pelo encontro de duas gerações distintas, que têm em comum o desejo de perpetuar os valores e fé retratados em música, levando a bandeira adiante. De um lado, lendas musicais jamaicanas como Cedric Myton, Winston McAnuff, Ken Boothe e Kiddus I. Do outro, veteranos e novatos na cena como Judy Mowatt, Horace Andy, Jah9, Var, Derajah e The Viceroys. O que temos aqui, portanto, é uma obra na qual a história é revista tanto por quem a construiu, quanto por quem a constrói na contemporaneidade. Todos juntos retrabalhado temas do repertório de cada um.

O resultado dessa união inigualável é a absoluta convergência da alma jamaicana e raízes reggae numa música que traduz toda a leveza e poder do gênero. O álbum, gravado em apenas 4 dias (!!!) ao ar livre nos topos dos morros e quintais de Kingston (daí o nome do projeto), traz uma deliciosa coleção de 13 músicas que não só é prato cheio para fãs do estilo, como também pode se mostrar uma feliz porta de entrada para ouvintes novatos interessados.

O projeto deu tão certo que acabou ganhando um belo documentário feito pelo cineasta Peter Webber. Em uma curta, mas produtiva sessão que durou os quatro dias da gravação do disco, o diretor indicado ao Oscar conseguiu capturar com rara e sensível perspectiva esta bela convergência da cultura jamaicana.

Na verdade, é exatamente nessa despudorada liberdade e naturalidade que reside o trunfo maior do trabalho. Var, um dos colaboradores do projeto, com a palavra: "Não é como se você estivesse no estúdio, onde você pode voltar e concertar as coisas. Você tem que cantar a canção direito. É aí que mora a beleza da coisa, porque é uma performance ao vivo. Não é uma coisa editada. Você apenas chega lá e canta, direto do seu coração".


Em tempos de entretenimento puro e simples, o trabalho soa como uma lufada de frescor que só a verdadeira essência poderia proporcionar. E o segredo para tal nos é revelado logo de saída na primeira faixa, "Love is the Key", a cargo dos poderosos The Viceroys. Uma manhã em Kingston, sol brilhando, pássaros cantando, cachorros latindo e uma voz que sabiamente aconselha: "A sabedoria é livre, conhecimento e compreensão também". Violões, baixo e percussão fazem a sedosa cama instrumental sobre a qual desfilam os vocais que evocam o melhor da tradição do canto jamaicano. Impossível não se emocionar.

A toada tocantemente espiritual transmuta de lânguida para vigorosa na poderosa "Let the Water Run Dry", a faixa seguinte, sob o comando do monstro Ken Boothe. A partir de "Slaving" até "Youthman" com os ídolos e gênios Lloyd Parks e Cedric Myton, respectivamente, o atrito musical leva à inevitável formação de chamas. Especialmente neste último caso, chega a impressionar a grandiosidade da intensidade espiritual que atinge. Entre as duas obras primas, os metais e backing vocals femininas no poderoso número "Black to I Roots" (com o grande Kush McAnuff).

"Crime" (Var) traz as coisas para dentro num dos mais belos momentos do disco, trazendo também uma das maiores e mais importantes reflexões, tão esquecida por nossos líderes nesses obscuros tempos de pobreza e violência: "You can't solve crime if the poor man still can't find no dime".

Em momentos como "Jah Power, Jah Glory" (Kiddus I) e "Artibella" (Ken Boothe), a amplitude da riqueza da música nativa se funde a sutis influências dos irmãos da costa latina. Já em uma pedrada como "Sign of the Times" (Steve Newland), fica nítida a união entre regional e universal no engendrar de um número não menos que incendiário. Incendiária também é a performance de Lloyd Parks quando retrabalha "Money For Jam", clássico de seu repertório, aqui presente em sua versão definitiva, com toda a densidade, peso, fluidez e força. As impressivas "Secret" (Winston McAnuff) e "Stone" (Derajah) aproximam-se mais do formato tradicional da canção jamaicana em outros dos dois mais marcantes momentos. O álbum remata com a beleza pungente "Thanks and Praises" (Bo-Pee).

O que temos aqui, por fim, é um clímax que tem início já nos primeiros sulcos e se estende por toda a extensão de uma obra não menos que marcante. Clássico moderno.

Por Artur Barros

Comentários

  1. Parabéns, bem raro ver um critico dando sua opinião sobre um som incrivelmente inteligente como o reggae.

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