Mofo: Arnaldo Baptista - Loki? (1974)


Por Rubens Leme da Costa
Colecionador

Ele é certamente o artista mais subestimado de toda a história pop brasileira. Músico brilhante, arranjador, letrista, usina inesgotável de ideias, Arnaldo foi o grande líder dos Mutantes, a banda brasileira mais admirada no exterior e que hoje é vítima de um culto que beira o insuportável. Porém, poucos conhecem ou falam da carreira errática de Arnaldo Baptista. Talvez porque ele tenha enlouquecido verdadeiramente, graças às drogas e às suas ideias nem sempre compreendidas pelos outros (e até por ele mesmo). Mas Arnaldo, em uma vida cheia de acidentes (e alguns quase fatais), compôs uma das mais belas obras inspirada na dor, nos delírios e nas imagens particularíssimas de alguém como ele. Loki? é mais do que um disco estranho e até assustador. É a grande obra-prima de um gênio e certamente o mais importante e brilhante (ainda que ninguém concorde comigo) disco do rock nacional.

Até onde pode ir um artista sofrendo de uma imensa dor, depressão e com graves problemas com as drogas? Terá alguma importância uma obra registrada nesse estado psicológico ou será apenas um registro curioso de uma pessoa destruída e com tantos medos? E, será que, passados muitos anos, essa obra ainda terá alguma relevância? É nesse contexto que
Loki? deve ser analisado. E a resposta, simples e direta, é uma só: sim, tem uma grande relevância e está longe de ser algo feito por alguém que já estava "doidão", para usar uma gíria da época.

O final dos Mutantes marca um período extremamente doloroso para Arnaldo Baptista. O líder dos Mutantes rompia um casamento com Rita Lee e mergulhava em uma viagem de depressão, paranóia e incertezas. E Arnaldo era ainda muito jovem para poder lidar com tantas coisas. Nascido no dia 06 de julho de 1948, o músico tinha pouco mais de 25 anos quando deu adeus aos Mutantes, trio (e depois quinteto) que havia sido a extensão de sua personalidade.


Após ter gravado o disco O A e o Z com os Mutantes em 1973, e que só foi lançado quase 20 anos depois, Arnaldo vivia amargurado. O álbum registrava uma guinada ao rock progressivo e os Mutantes já eram um quarteto (além de Arnaldo estavam seu irmão Sérgio, o baixista Liminha e o baterista Dinho), mas já sem Rita Lee.

Rita e Arnaldo, aliás, já estavam se separando, o que serviu para aumentar ainda mais seu desespero. Ele já era um mito do rock brasileiro, e um mito com enormes problemas, incluindo falta de dinheiro, drogas e várias brigas. E era esse Arnaldo que resolveu romper com tudo e quis registrar um dos discos mais emblemáticos não apenas do rock nacional, como também de toda a história da música.

Arnaldo havia feito algumas canções e resolveu que era hora de registrá-las. Primeiro, tentou falar com o presidente da Philips, André Midani, mas acabou mesmo convencendo o produtor da casa, Roberto Menescal, que junto com Mazola topou a empreitada, ambos intrigados com o que tinham ouvido.

Arnaldo resolveu então chamar seus velhos companheiros - o baixista Liminha, o baterista Dinho, a própria Rita Lee e o maestro Rogério Duprat. O que ninguém podeira imaginar era o resultado final ...

Gravado no estúdio Eldorado e registrado em 16 canais,
Loki? marca, entre outras coisas, pela ausência de guitarra (exceção feita à faixa final, "É Fácil", com um violão de 12 cordas tocado pelo próprio Arnaldo), a exuberância do piano de Arnaldo e por letras extremamente pessoais e, em certos momentos, embaraçosas.

Arnaldo queria gravar o disco com uma grande urgência, urgência essa que só encontrou paralelo no álbum
Plastic Ono Band, de John Lennon, de 1971. Com a cozinha dos Mutantes, Arnaldo ia gravando rapidamente, com grande sofreguidão e arranjando confusão com os dois músicos, por ser recusar a refazer algumas faixas.

Arnaldo mostrava um eclestimo impressionante, mesclando o glam rock, o boogie-woogie, o rock and roll, o progressivo, com os arranjos de Duprat, resultando numa mistura até hoje inigualável.


O disco abre com "Será Que Eu Vou Virar Bolor?", com Arnaldo tocando no melhor estilo dos anos 50 - Jerry Lee Lewis, Little Richard - e misturando Alice Cooper, Nasa e o medo de ser esquecido em um texto permeado de humor e medo. A segunda faixa, "Uma Pessoa Só", traz um belo arranjo de cordas de Duprat e um dos versos mais bonitos já escritos na música: "Estamos numa boa pescando pessoas no mar / Aqui / Numa pessoa só".

O disco continua com "Não Estou Nem Aí", tem Rita Lee nos vocais de apoio e é um tantinho auto-biográfica - "
Ontem me disseram que um dia eu vou morrer / Mas até lá eu não vou me esconder / Porque eu não estou nem aí pra morte / Não estou nem aí pra sorte / Eu quero mais é decolar toda manhã."

A quarta faixa, "Vou Me Afundar na Lingerie", é um dos grandes momentos de sua carreira, com uma letra muito bem humorada, com gírias da época. "Honky Tonky" é instrumental, onde Arnaldo passeia por vários estilos no piano.

"Cê Tá Pensando Que Eu Sou Loki?" abre com um arranjo que remete ao disco de Tom Jobim com Frank Sinatra (F
rancis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, com orquestrações de Claus Ogerman) - com um arranjo meio bossa-nova, meio samba, e com várias referências na letra sobre suas viagens com as drogas, seu passado e, claro, Rita Lee, especialmente quando se refere à cilibrina - isso porque Rita Lee montou com Lúcia Turnbull o duo Cilibrinas do Éden.

"Desculpe" é uma das baladas mais corta-pulsos da história, de assustar um Iggy Pop ou Ian Curtis: "
Desculpe / Se eu fiz você chorar / Te esqueça / Olhe, o sol chegou / Diga-me o meu nome / Diga-me que você me quer / Sinta o pulso de todos os tempos / Comigo / Até quando, eu não sei / Mas desculpe / Mas eu vou me fechar / Não sou perfeito / Nem mesmo você é / Me abrace, diga-me o meu nome / Diga-me que você me quer / Sinta o pulso de todos os tempos / Comigo, até quando não sei / Sinta o barato de ser ser humano / Comigo / Até quando Deus quiser." Recado à Rita Lee? Provavelmente.

"Navegar de Novo" é um dos primeiros ataques à sociedade de consumo que se criava no Brasil, criticando a superficialidade das pessoas e fazendo um olhar esperançoso ao Brasil do futuro. "Te Amo Podes Crer" mais parece um outro recado à ex-parceira. O disco fecha com "É Fácil", a única com violão e com a letra "Eu me amo / Como eu amo você / É fácil", em rápidos 1 minuto e 55 segundos.

O LP mostra um Arnaldo Baptista tentando erradicar e entender seus demônios. Logo após o lançamento, Arnaldo sofreria uma de suas primeiras internações, por causa da violência potencializada pelas drogas.

Sérgio Dias, seu irmão, conta que Arnaldo odiou o título do álbum, então imposto pela gravadora, assim como a capa feita, totalmente longe do contexto sonhado por ele. O trabalho teve uma vendagem pífia, aumentando ainda mais sua dor.


Em uma entrevista histórica concedida à jornalista Ana Maria Bahiana e publicada no jornal
O Globo no dia 28/04/1978, Arnaldo faz um grande desabafo. Confira alguns momentos:

Sobre música: "
Rock eu gosto porque é meu sangue. É minha vida, desde que nasci."

Sobre Rita Lee: "
Quando eu ouvia a Rita, gostava. Não ouço nem vejo a Rita há muito tempo. Me faz muito mal. Más vibrações. Para baixo. Marta não deixa porque me faz mal. Os Mutantes do Sérgio eu operei som para eles, uma vez. O Sérgio vem tocar aqui com a gente no domingo, dar uma força."

Sobre os Mutantes: "
Era bom. Não, não tenho saudades. A agressividade, naquele tempo, era quase nula."

Sobre os anos pós-
Loki até o então atual momento, como Arnaldo & Patrulha do Espaço: "Passei quatro anos num ostracismo. Não tinha ninguém, mulher nenhuma. Ninguém me queria. Não tinha amor. Aí me internaram, porque parece que fiquei uma pessoa violenta. E eu não quero ser uma pessoa violenta. Diziam que eu era. Me internaram. Agora estou bem. Cortei as drogas. Tenho um psiquiatra. Tomo uns remédios. Estou bem. Logo que saí de ser internado eu comecei a fazer esse grupo, a Space Patrol. Ia chamar assim, mas por razões de ... evolução ... não ... chama Patrulha do Espaço. Estamos trabalhando há um ano. É um bom trabalho. Eu trabalho muito. Não sou violento. A bateria é. O piano não consegue, por causa da amplificação."

Em um dos momentos mais lindos do texto, Ana Maria relata: "
Subitamente pede licença, vai correndo ao palco cuidar, pessoalmente, das ligações elétricas de seu teclado Hohner. Se é possível ter certeza de algo, de coisa sei: ele não está brincando de pirado. Todo seu corpo, todo seu rosto está empenhado numa batalha surda e intensa, digna, que não tem nada a ver com as possíveis fantasias de sua ex ou atual plateia. Agachado atrás dos amplificadores, metodicamente checando fios e plugs, sobrancelhas cerradas, ele não parece um herói: está lutando por sua vida. Com todas as forças."

É por tudo isso que
Loki? é (em minha modesta opinião), o mais belo registro feito no Brasil. Passado mais de 30 anos (ele foi lançado em 1974), ele se mostra assustadoramente atual, apesar de alguns erros técnicos. Talvez Arnaldo quisesse mostrar nos erros técnicos os erros pessoais, ou talvez não tivesse mais cabeça em mexer em algo que lhe tinha sido tão caro. Sua vida seguiria num limbo, até o mal explicado acidente do hospital psiquiátrico, em 1981, quando se jogou do terceiro andar e ficou um tempo em coma. Para alguns, uma tentativa de suicídio. Para Arnaldo, apenas uma maneira de tentar fugir daquele horrível lugar.

Comentários

  1. Lindo texto. Para mim, Lóki é essencial, e com certeza, o melhor disco do rock nacional, e talvez um dos 10 melhores em todos os tempos. Parabéns!!!

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  2. Este disco não deve nada a nenhum disco de qualquer outro artista nacional ou internacional....Cru...Emocional...Lirico...Perturbador....Brilhante

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  3. Bela matéria sobre um disco que na minha opinião sem sombra de dúvidas é o mais sincero testemunho passado por um indivíduo através da música, resultando numa obra-prima, o que mostra toda a entrega e sentimento que Arnaldo tem pela música, fazendo desta uma das expressões de sua personalidade, assim como com a pintura e as artes plásticas.

    Parabéns pelo texto.

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