Por Rodrigo ‘Garras’ de Andrade
Jornalista e Colecionador
Os Armênios
O ano de 1975 foi decisivo na carreira de Neil Young. O artista saía de um período barra pesada marcado pelo distanciamento do público, desentendimentos com a imprensa, morte de amigos por overdose (o guitarrista Danny Whitten e o roadie e produtor Bruce Berry) e um grande abuso de álcool e drogas. E o lançamento de dois discos incríveis, seguidos, foi a mola que impulsionou o compositor para mais uma fase memorável na sua trajetória.
Em junho daquele ano, Tonight´s the Night foi editado. O álbum havia ficado pronto dois anos antes, mas a gravadora se recusou a lançá-lo. Composto e gravado no momento mais crítico da vida de Young, o LP é um retrato pesaroso dessa fase: um trabalho pesado, tanto na sonoridade quanto nas letras, mas justamente por isso um disco forte! A Reprise (subsidiária da Warner) temia que o público se assustasse com a metamorfose do artista, que em 1972 havia apresentado Harvest ao mundo (acústico, sereno, bucólico), e no ano seguinte surgia com um trabalho tão contrastante (elétrico, nervoso, denso). Acabou engavetando um dos discos mais pungentes da história da música. Porém, seu (re) surgimento não poderia ter sido em melhor hora. Uma obra clássica como essa não passaria despercebida, e Neil conseguiu chamar as atenções para si outra vez.
Em novembro de 1975, apenas cinco meses depois de Tonight´s the Night, foi a vez de Zuma chegar às lojas. Com esse álbum sóbrio, o compositor fez as pazes com o público e a crítica. Passeando pelo folk, hard e country rock, o disco alterna momentos acústicos e elétricos de maneira coerente e precisa, cheio da fúria contida característica de Neil. Quem o acompanha nesse trabalho é a Crazy Horse, sua fiel escudeira quando a intenção é fazer barulho. Desde a primeira vez em que tocaram juntos (gravando em 1969 o inacreditável Everybody Knows this is Nowhere) até hoje, a banda mudou de formação apenas uma vez (e só porque Danny Whitten morreu). E é em Zuma que Frank “Poncho” Sampedro estreia na guitarra base, detalhe que já torna esse álbum marcante na carreira do artista.
Normalmente, esse trabalho é lembrado pelo seu ótimo desempenho comercial. Mas se engana quem vê ele como um disco fácil, produzido para cair no gosto popular. Essa análise superficial não leva em conta que logo após o catártico Tonight´s the Night, onde o artista exorcizou seus demônios, o caminho natural era seguir uma trilha mais serena. Ainda, dizer que as músicas são sobre amor, sugerindo letras açucaradas, é outro devaneio: a temática predominante é sobre um relacionamento que se esfacelou. E a carreira de Neil tem como característica o fato de ser autobiográfica e desligada de interesses comerciais, tratando-se de um artista que já conquistou um público fiel. Geralmente, as resenhas existentes sobre esse disco pecam por dar-lhe um aspecto pop, no sentido negativo (mercadológico). Zuma tornou-se um clássico por ter conteúdo, e não por ser acessível.
Inicialmente, era para ser um disco conceitual, sobre viagem no tempo e civilizações antigas, como os Incas e os Astecas. Tanto que, com o intuito de criar uma atmosfera em torno das músicas, as sessões de gravação ocorreram sempre durante o nascer do sol, quando a banda estava acordando ou, muitas vezes, indo para a cama. Mas o temperamento volúvel e a criatividade de Neil Young sempre o fizeram abandonar ou modificar seus projetos. Suas ideias surgem mais rápido do que ele é capaz de executar, e com Zuma não foi diferente. Canções fundamentais para o conceito bolado pelo artista acabaram não entrando no álbum. Algumas delas, como “Pocahontas”, “Ride My Llama” e “Powderfinger” só foram aparecer em Rust Never Sleeps, quatro anos depois. Até mesmo o título do disco mudou pelo menos quatro vezes: In My Llama, In My Old Neighbourhood e My Old Car foram hipóteses levantadas. Até que, por fim, optou-se por Zuma, nome de uma praia onde o artista tem uma casa. Posteriormente, surgiram boatos que o disco havia sido gravado na garagem dessa residência, mas a informação não é confirmada.
Apesar de tantas mudanças de percurso, o resultado final é maravilhoso. O álbum inicia com um belo rock, “Don´t Cry No Tears”. Um biógrafo citou essa como tendo sido a primeira canção que Neil compôs, ainda na adolescência. Realmente existe uma gravação caseira, executada apenas no violão e datada de 1965, de uma música chamada “Don´t Pity Me Babe”, cuja melodia e parte da letra são semelhantes. Também existem registros de que os Squires, uma das primeiras bandas de que Young fez parte, tocavam essa canção. Por isso não restam dúvidas de que a composição remete aos primórdios da carreira do canadense, ainda que se trate de uma versão um tanto quanto diferente dessa que abre Zuma.
A segunda pérola do disco é “Danger Bird”. Nasceu a partir de uma série de solos esquisitos executados por Young e seu novo companheiro, Frank Sampedro. Uma bela canção, longa e de andamento lento, foi tomando forma nessas experimentações. Por fim, o resultado impressionou até mesmo Lou Reed que, apesar de não simpatizar com Neil, chegou a declarar que “Danger Bird” possui o melhor trabalho de guitarra-solo que ele já ouvira, além de elogiar também a letra(!).
Na sequência, mantendo o nível do álbum, vem uma balada folk fenomenal, “Pardon My Heart”. Já foi dito que ela havia sido composta em 1972 para fazer parte de Harvest, mas é outra informação de fonte incerta. Porém, ela não destoaria das outras faixas daquele álbum. Uma vez que os ânimos se acalmam após essa canção, o disco segue com outra música lenta. “Lookin' for a Love” é um country rock romântico, musicalmente bem simples. A letra, ao contrário das outras, olha para o futuro de forma esperançosa. As demais canções de Zuma, como já foi dito, são reflexões sobre um relacionamento que chega ao fim.
Um bom exemplo é “Barstool Blues”. Toda na primeira pessoa (como se o cantor estivesse falando diretamente ao ouvinte), nota-se claramente que a intenção é fazer o autor se passar por um bêbado, chorando suas mágoas num boteco. Empregando mais ritmo ao álbum, a música embala numa performance etílica da Crazy Horse e, como o crítico Matthew Greenwalg já comentou, é uma das canções tristes mais “engraçadas” de Neil.
Sobre esta última música, existe uma história que dá algumas pistas de como foi sua composição. Frank Sampedro declarou, em uma entrevista, que certa noite ele e Neil Young saíram para encher a cara. Após percorrerem todos os botecos de Malibu, os dois se separaram. No dia seguinte, Neil ligou para Frank perguntando o que havia acontecido, pois ele acordara na cama sobre papéis com três músicas novas e, por ter bebido demais, não lembrava de tê-las composto, apesar da caligrafia nas folhas ser a sua. “Duas dessas canções estão em Zuma”, garantiu Sampedro. Uma delas é, certamente, “Barstool Blues”.
A próxima faixa (a primeira do lado B) é “Stupid Girl”. Em poucas palavras, é um esporro numa mina. O início já diz tudo: “Você é apenas uma garota estúpida / Você realmente tem muito o que aprender”. Existem rumores de que ela seria sobre Joni Mitchell, mas é mais uma daquelas histórias que ficam no ar, sem se saber a verdade. Ainda, os Rolling Stones gravaram uma música com esse mesmo nome no álbum Aftermath (1966). Em Tonight´s the Night Young fez referência a outra canção desse mesmo disco (“Borrowed Tune” tem a melodia emprestada de “Lady Jane”, dos ingleses). Na época, alguns curiosos tentaram estabelecer relações entre esses fatos. Porém, até que se prove o contrário, tudo não passa de mera coincidência.
A faixa seguinte, “Drive Back”, é um rockão calcado nos poderosos (e pesados) riffs da guitarra de Neil. A letra é mais uma visão alcoólatra de um relacionamento em desintegração. E a Crazy Horse, como sempre, cumpre com maestria o papel de acompanhar o canadense em suas inspiradas performances. Mas essa música é apenas um aperitivo. O prato principal vem em seguida.
O ponto alto do disco é, sem dúvida, “Cortez the Killer”. A música é um dos maiores clássicos de Neil Young, sendo sua execução quase obrigatória nos shows. Com seus 7 minutos, essa pungente canção é a versão de Neil sobre a conquista do México e o fim do império Asteca. Os fãs antigos se deleitaram ao constatar que a composição remetia aos longos solos do início da carreira do canadense (como “Cowgirl in the Sand” e “Down By The River”). Declaradamente anti-colonialista, no encarte da coletânea Decade (1977) o guitarrista fez questão de frisar: “banida na Espanha”.
Depois de uma peça como essa, fica difícil encerrar o álbum. Então, muita acertadamente, Young incluiu uma canção do supergrupo Crosby, Stills, Nash e Young. “Through My Sails” é um outtake originário das sessões que a banda acabou abortando em 1974. Essa introspectiva balada folk (com uma das melhores performances vocais do conjunto) encerra Zuma com chave de ouro. Se não tivesse vindo à tona, seria um verdadeiro tesouro perdido (até hoje).
Terminada a audição do disco, resta uma questão: será que não se trata realmente de um álbum conceitual? A obra retrata uma viagem no tempo, porém, mostrando a carreira do seu criador. Estão lá a primeira composição de Neil Young, seus grupos mais marcantes, performances nos mais variados estilos já executados pelo compositor, seus amores passados, suas bebedeiras monumentais, sua personalidade inconstante, e até a sua guitarra Les Paul (usada para gravar o lendário Everybody Knows this is Nowhere) voltou a ser usada na gravação do disco.
Quando o vídeo Year of the Horse, dirigido pelo genial Jim Jarmusch, foi lançado, retratando a turnê européia da Crazy Horse na metade dos anos noventa, várias imagens raras e incríveis de 1975 foram resgatadas. Aos interessados pelo período específico da carreira do artista, vale realmente a pena conferir. De qualquer sorte, o DVD é muito interessante.
Com Zuma entende-se porque Neil Young é uma lenda na história do rock. Destroçador de guitarras ou poeta eloquente, ele é um artista completo! Até hoje o disco segue sendo apontado como um dos pontos altos na sua vasta e sólida discografia. Preferido de muitos fãs, talvez seja uma boa porta de entrada ao universo do canadense e sua pesada banda de apoio, já que cobre diferentes sonoridades exploradas por ele. Para ouvir no talo!
Faixas:
1) Don’t Cry No Tears – 2:34
2)Danger Bird – 6:54
3) Pardon My Heart – 3:49
4) Lookin’ for a Love – 3:17
5) Barstool Blues – 3:02
6) Stupid Girl – 3:13
7) Drive Back – 3:32
8) Cortez the Killer – 7:29
9) Through My Sails – 2:41
Músicos:
Neil Young – guitarra, violão, harmônica, vocais, demais instrumentos em “Pardon My Heart”
Frank Sampedro – guitarra base (membro da Crazy Horse)
Billy Talbot – baixo e vocais (membro da Crazy Horse)
Ralph Molina – bateria e vocais (membro da Crazy Horse)
Tim Drummond – baixo em “Pardon My Heart” e bateria (provavelmente na mesma faixa)
Stephen Stills – baixo e vocais em “Through My Sails”
David Crosby – violão e vocais em “Through My Sails”
Graham Nash – vocais em “Through My Sails”
Russ Kunkel – congas em “Through My Sails”
Produção:
Tim Mulligan e Neil Young – faixas 3, 4 e 9
David Briggs e Neil Young – demais faixas
Arte da capa e encarte: Mazzeo
Masterização: George Horn
Direção: Elliot Roberts
Direção: Elliot Roberts
Pô, se tivesse só "Cortez the Killer" já seria o suficiente para ser um álbum espetacular. E tem muito mais. Disco obrigatório e um dos melhores da carreira de Neil Young. Texto de primeira.
ResponderExcluirBelo texto sobre um dos melhores discos da carreira do (quase sempre) genial Neil Young. "Cortez the Killer" é uma canção fascinante, hipnotizando o ouvinte, levado a acompanhar os longos solos da faixa, que mostram que não é preciso grandes técnicas nem velocidades absurdas para se fazer um solo de guitarra virar um clássico...
ResponderExcluirSe alguém tiver oportunidade de ouvir, recomendo o bootleg "Live At Amsterdam Ahoy", já nos anos 90, com uma versão de mais de 30 minutos de "Cortez"! Espetacular é pouco!
Engraçado que nunca li um texto explicando direito a "trilogia deprê" de Young ("Tonight's...", "Zuma" e "On The Beach")... sei que tem muitas histórias deste período que mereciam ser contadas, mas não tenho conhecimento para tanto... alguém se habilita?
Micael, o On the Beach é um discaço, ótima lembrança. Já o Tonight´s the Night acho deprê demais, me puxa muito pra baixo, por isso não gosto muito de ouvir o disco.
ResponderExcluirAbraço.
Não chega a ser uma lembrança, Cadão. É que estes três discos estão umbilicalmente ligados pelas tragédias que Neil enfrentou à época (e que estão citadas no texto), formando uma trilogia. Agora, as circustâncias em que Neil e a banda se encontravam na época das gravações (tanto fisica quanto mentalmente) eram as mais lastimáveis possíveis, do pouco que sei sobre isso... tenho curiosidade de saber mais sobre esta "época negra" do artista (que mesmo assim rendeu três discaços), só que não há muitos textos abordando este período...
ResponderExcluirAMO ON THE BEACH
ResponderExcluirOn the Beach tem uma das minhas músicas prediletas de Neil Young, que é "Revolution Blues".
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