Charles Bradley: crítica de Victim of Love (2013)

Hoje em dia, Charles Bradley tem pressa. Afinal, passaram-se 62 longos anos até que fosse descoberto pela Dunham/Daptone Records e conseguisse lançar No Time For Dreaming(2011), seu primeiro álbum. Durante esse período, sua voz permaneceu intacta. Uma espécie de processo involuntário de preservação. E digamos que valeu a pena. Apenas dois anos após a estreia tardia, porém magistral, o negão já está de volta e novamente pede passagem com seu vozeirão cativante e um soul digno dos maiores mestres do gênero.

Aos 64 anos e tendo vivido boa parte deles em meio ao caos social, nada mais natural que Charles exale sofrimento. Na voz e na música, encharcadas pela miséria do Brooklyn, local em que o cantor, natural da Flórida, passou a morar com a mãe a partir dos oito anos. Entretanto, nem só de dor e raiva de espírito está preenchida a obra deste maníaco por James Brown. Há espaço também para o amor e a gratidão, valores que norteiam Victim of Love conceitualmente e o diferem da angústia quase que onipresente em seu debut.

Essa, talvez, pudesse ser a grande dicotomia entre os dois trabalhos, não fosse a assombrosa evolução no entrosamento entre Charles Bradley e a Menahan Street Band. O que já era bom em No Time For Dreaming ficou excelente no novo disco. Em plena sintonia, a voz aveludada do cantor e os arranjos de sua talentosa backing band se completam e fazem jus ao preceito básico do soul: música que vem da alma. Simples assim.

"Strictly Reserved for You", escolhido como primeiro single, tem também a tarefa de iniciar o track list. Trata-se de uma ótima música, mas que é inevitavelmente ofuscada assim que se ouve as primeiras notas da faixa seguinte: "You Put The Flame on It". Essa, sim, o verdadeiro carro-chefe do álbum. Que canção! É o símbolo da aura mais positiva supracitada e conta com backing vocals simplesmente arrebatadores. Em um exercício de sinestesia, dá até para visualizar as belas e avantajadas negras que detêm quase que com exclusividade esse dom.

"Let Love Stand a Chance" e "Victim of Love" são as duas mais tristes do disco. Destaque maior para a segunda: acústica, tocante, dona de ótimos coros e, se brincar, mais arcadista que o poema "Marília de Dirceu". Realmente muito bonita. Ambas abrem caminho para "Love Bug Blues", que tem a tarefa de retomar a faceta alegre/dançante e apresenta uma baita levada funky. Groove animal e destaque total para o trabalho de metais. Mais James Brown, impossível.

Eis que chegamos, então, a outro ponto alto de Victim of Love: "Dusty Blue", um paradoxo que merece parágrafo exclusivo. Afinal, quão improvável é uma canção instrumental se sobressair em meio a um trabalho que privilegia a voz do protagonista? Pois é justamente o que acontece. Soul psicodélico guiado por metais, incursões de flautas e um Hammond lisérgico. Menahan Street Band no ápice e em uma viagem de fazer inveja ao Tame Impala e seu Lonerism, disco mais psicodélico de 2012. Daquelas faixas para se deixar rolando no repeat. A cada audição, uma sensação nova.

Na segunda metade, temos as boas "Crying in the Chapel" e "Hurricane", mas é "Where Do We Go From Here" quem rouba a cena. Funk pesado, com baixo vibrante, bateria sincopada e muita alma. Se havia dúvida de que Victim of Love conseguiria superar No Time For Dreaming, ela morre aqui. O novo álbum vai muito além do primeiro e coloca Charles Bradley na linha de frente da música negra.

Quando o disco se encerra com "Through the Storm", uma música de gratidão, na qual Charles agradece a quem lhe ajudou a superar o passado traumático, o jogo já está mais do que ganho. Goleada a favor do soul, do R&B, do funk, das trilhas da Blaxploitation...

Talvez Charles Bradley não tenha tanto tempo para construir uma vasta obra ao longo dos anos. Tempo para experimentar, ousar, percorrer outros caminhos. Nosso herói já não é mais um garoto e a carreira, que se iniciou tarde, pode acabar sendo breve. Porém, com apenas dois álbuns, sua voz e sua música, além de terem aura própria, também já conseguiram evocar as melhores lembranças de Otis Redding, Marvin Gaye, James Brown, Shuggie Otis... Não é pouca coisa. Obrigado, Charles.

Nota: 9,5




Faixas:

1 Strictly Reserved for You 3:43
2 You Put the Flame on It 3:48
3 Let Love Stand a Chance 3:59
4 Victim of Love 3:29
5 Love Bug Blues 3:00
6 Dusty Blue 3:21
7 Confusion 3:45
8 Where Do We Go from Here 3:11
9 Crying in the Chapel 3:54
10 Hurricane 3:32
11 Through the Storm 4:42
 
Por Guilherme Gonçalves

Comentários

  1. Eita nóis!
    Gostei demais da resenha.
    Me pegou de surpresa isso por aqui. \o/

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  2. isso é que eu chamo de resenha ! Estou até baixando para conferir, pois adorei o "No Time for Dreaming".

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  3. Muito bom! Não conhecia.

    Valeu demais pela indicação, estou ouvindo direto os dois discos do Bradley.

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  4. que texto ! parabéns cara, o mundo precisa escutar essa cara !

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