Arcade Fire: crítica de Reflektor (2013)

Reflektor, novo álbum do Arcade Fire, é bipolar. Duplo, traz dois discos bastante distintos. O primeiro é solar, pra cima, dançante. O segundo é contemplativo, dramático, emocionante. E ambos são excelentes.

Formada em Montreal em 2001, a banda liderada pelo casal Win Butler e Régine Chassagne chega ao seu quarto trabalho com Reflektor. E, graças aos seus ótimos três álbuns anteriores - Funeral (2004), Neon Bible (2007) e The Suburbs (2010) -, tudo que envolve Reflektor vem cercado da mais alta expectativa. Expectativa essa justificada e devidamente cumprida.

Produzido por James Murphy, do LCD Soundsystem, o disco traz treze faixas, a maioria com duração superior a seis minutos. Como sempre, a banda manteve a sua personalidade - canções fortes com refrões sempre emocionantes e arrepiantes -, mas a renovou com uma nova embalagem. Em Funeral fomos apresentados ao Arcade Fire barroco, que em Neon Bible se transformou em gótico e em The Suburbs surgiu mais pop do que nunca. Em Reflektor, o que temos é um som dançante, com uso de muitos instrumentos eletrônicos, o que dá, ao mesmo tempo, uma cara contemporânea e, em alguns momentos, até mesmo oitentista ao trabalho..

Eu não sei escrever sobre música da maneira que alguns críticos escrevem, criando longas teorias e traçando paralelos entre o som que ouvem e obras, momentos e histórias anteriores. Eu não sei localizar Reflektor no espaço e no tempo. Sou incapaz de fazer o exercício de futurologia que o respeitado David Frickle, crítico da Rolling Stone, fez, apontando Reflektor como o ponto de virada na carreira do Arcade Fire, classificando-o como o seu Achtung Baby, o seu Kid A. Não tenho capacidade e nem conhecimento para isso. E é por isso que ele escreve para uma das principais publicações do planeta, enquanto eu arranho ideias em um mero blog.

No entanto, o que eu sei é que há uma fartura, uma abundância de boas ideias em Reflektor. E o Arcade Fire, com o talento que já demonstrou ao mundo ter, transforma tudo isso em um álbum profundo, intenso e apaixonante. A faixa-título, primeiro single, já vem com uma musicalidade absurdamente rica, traçando curvas e mudanças de direcionamento enquanto Butler e Régine levam o ouvinte para alguma boate esfumaçada de Manchester. Um início arrebatador, que segue no topo com a faixa seguinte, “We Exist”, cuja linha de baixo faz alusão ao da mais do que clássica “Billie Jean”, de um certo Michael Jackson.

Eu não sei se estou certo. Na verdade, eu posso estar completamente errado. Mas o que eu quero dizer é que eu ouço elementos do The Cure em diversos momentos da primeira parte de Reflektor. Não sei se é a voz de Butler, ou se são os arranjos, ou se é a soma de fatores que fez a minha mente criar essa ponte entre a banda de Robert Smith e o Arcade Fire. Ponte essa que se repete na segunda parte, só que com outro destino: os Beatles. Sim, os Beatles, aquela banda inglesa que mudou tudo. Ao ouvir as faixas do segundo disco de Reflektor, o lado dois do álbum Abbey Road foi se materializando bem diante dos meus olhos. As harmonias vocais, a emoção que leva a contemplação de nossas próprias vidas, prestes a presenciar algo que irá mudá-las definitivamente.

E então, mesmo sem querer, cometo o que afirmei que era incapaz de cometer: uma analogia com momentos passados, distintos, que localizam Reflektor no tempo e no espaço. Tudo nele, assim como tudo que o Arcade Fire já gravou, tem apenas um destino: o coração do ouvinte. É impossível passar incólume pelas composições do grupo, e essa característica se mantém neste quarto disco.

Entre as faixas, o destaque instantâneo já foi dado à que dá nome ao trabalho. Mas merece ser dado também, com toda a plenitude e louvor, a outras grandes canções como “Here Comes the Night Time”, “Normal Person”, “You Already Know” (na minha percepção, na minha loucura e na minha própria bipolaridade, a mais The Cure de todo o álbum) e “Joan of Arc”, com um delicioso contraponto entre a voz masculina de Butler cantando em inglês e a resposta feminina de Régine com versos em francês. Pulando para a segunda parte de Reflektor, a dobradinha “Awful Sound (Oh Eurydice)” e “It’s Never Over (Oh Orpheus)” emociona até uma pedra. Em “Porno”, Win Butler canta sobre uma batida familiar ao rap, mas com linhas vocais com muito mais vida e melodia do que o gênero nascido nas ruas norte-americanas. E há “Afterlife”, a irmã de “Reflektor”, lá na outra ponta, distante no tracklist mas extremamente próxima na sonoridade, no clima, no astral, da canção que batiza esse excelente disco.

Como já disse antes, eu não sou um crítico erudito, cheio de referências literárias e histórias. Na verdade, não sei nem se sou um crítico de música - e muita gente também acha isso desse que vos escreve. Mas o que eu sei que sou é um cara que ouve muita música, pesquisa muito sobre o assunto, e mantém intacta a capacidade de se emocionar, de se deixar levar, de mudar todo o seu dia por causa de uma única canção. E o Arcade Fire faz isso comigo. Dá vontade de passar horas, dias, meses, ouvindo Reflektor. O disco é muito bom, é completo, é arrebatador. Resumindo, é ótimo.

Isso eu sei, e você também saberá ao ouvir.

(assim como sei que esse texto é um dos mais transparentes que já escrevi)

Nota 9,5

Faixas:

CD 1
1 Reflektor
2 We Exist
3 Flashbulb Eyes
4 Here Comes the Night Time
5 Normal Person
6 You Already Know
7 Joan of Arc

CD 2
1 Here Comes the Night Time II
2 Awful Sound (Oh Eurydice)
3 It’s Never Over (Oh Orpheus)
4 Porno
5 Afterlife
6 Supersymmetry

Por Ricardo Seelig

Comentários

  1. Arcade Fire e Arctic Monkeys são duas bandas daqueles que eu me sinto "cachorro que caiu do caminhão de mudança". Parece que todo mundo foi e eu fiquei. Hehe
    Já tentei, mas não rolou.
    Mesmo assim, valeu pela resenha.
    Parece que podem vir pro Lolla junto com NIN, Muse, Depeche Mode, Pixies e Soundgarden, o que me faz cogitar a ir ao evento, por mais que ache ele indie demais. Mas são muitas bandas boas em apenas 2 dias. Essa resenha me contextualiza do que é esse tal de Arcade Fire pra se ele aparecer ... e seu eu for nessa porra mesmo.

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  2. Estou ouvindo agora e gostei bastante. Pode ser alucinação minha, mas vi algo de David Bowie e The Clash no disco também. No geral, pode-se dizer que os caras chegaram àquele ponto em que não estão presos a estilo algum, como o próprio Clash a partir de London Calling. Muito bom!

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  3. Ótima resenha, Cadão! Além de honestíssima, ela está tão legal que me fez procurar a banda e o disco para ouvir. Aliás, este tem sido o teu maior mérito nesse tempo que acompanho o blog: me levar a ouvir bandas que o meu meio despreza (sabes do meu envolvimento com o som extremo, né?)com uma expectativa bem mais positiva do que de costume. E o mais legal é que tuas dicas têm funcionado pra mim: estou ouvindo e curtindo bastante o disquinho. Obrigado por mais essa dica! Abraço!

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  4. Fazer um cara como você, Cristiano, ligado ao metal extremo desde sempre, ouvir e gostar do Arcade Fire é um feito e tanto (rs). Obrigado pelo retorno.

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  5. Hehehehehehehe...apesar da minha ligação com o som mais barulhento, eu sempre gostei de originalidade e criatividade, de Anal Cunt a Kitaro; por isso, sons legais, bem feitos e inteligentes sempre chamam minha atenção, principalmente quando a dica vem de uma pessoa que tem uma visão aberta e legal como a tua! Abraço, brother!

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  6. Discaço mesmo. Um pouco mais difícil de assimilar, em relação ao anterior, mas muito mais rico. Legal ver essa capacidade de transição entre um álbum mais pop e algo mais elaborado.

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  7. Ricardo, gostei muito do seu texto, não pq sou fã da banda e achei o disco maravilhoso também, até pq não tinha lido nada sobre, pois prefiro ouvir com calma, faixa a faixa, todos os discos dos meus artistas favoritos, mas pela clareza do texto e pelas impressões que você têm sobre o disco. Reflektor me agradou desde a primeira audição. É difícil isso acontecer, mas achei o disco perfeito e já escutei várias vezes e não cansa ou desagrada. Acho melhor que The Suburbs e que faz uma trinca maravilhosa com Funeral e Neon Bible. Mesmo sendo dois discos de músicas longas, não é enfadonho, não se perde e as canções são bonitas, com arranjos que se encaixam perfeitamente à atmosfera do que a banda propõe, o que é uma característica deles. Tb "ouvi" um pouco de Cure nesse disco (que adoro). Destaco Flashbulb Eyes, Normal Person, Joan of Arc, Afterlife, Here Comes the Night Time I e II e Reflektor como as melhores do disco. Aliás, Reflektor poderia abrir o show deles aqui no Lolla 2014.

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