Discoteca Básica Bizz #016: Miles Davis - Kind of Blue (1959)


Há pelo menos oito discos de Miles que não podem ficar fora de nenhuma discoteca básica. A boa pergunta é: por que, então, Kind of Blue na pole position?

O estudo da quilométrica carreira do trompetista não pode dispensar Miles Davis - A Critical Biography (Quartet Books, Londres), do músico e crítico Ian Carr. Segundo ele, Kind of Blue seria "talvez o disco a exercer a maior influência na história do jazz". Isto posto, vale lembrar que o próprio Carr concorda que o período entre 1958 e 1960 - quando Miles gravou também Milestones, Porgy and Bess e Sketches of Spain - representa o primeiro pico do amadurecimento de Miles como bandleader, comparável apenas à fase elétrica/eletrônica (1968/1970), que abrange de Miles in the Sky a A Tribute to Jack Johnson, passando pelos básicos In a Silent Way e Bitches Brew.

Acontece que Kind of Blue foi o primeiro disco da história totalmente improvisado. No texto da contracapa, Bill Evans explica que Miles só apresentou o esqueleto de cada faixa horas antes da gravação - nenhum dos cinco temas jamais executados anteriormente pelos músicos.

Os músicos, um capítulo à parte. Completam a textura metálica dos sopros os saxofones de Cannonball Adderley (alto) e o gênio John Coltrane (tenor). Bill Evans é o pianista em todas as faixas, exceto "Freddie Freeloader" (em que Miles, pela simplicidade de blues tradicional do tema, o substituiu por Wyn Kelly). A seção rítmica - Paul Chambers (baixo) e James Cobb (bateria) - não faz mais que armar a cama para metais e piano, em sua exuberante calma anti-virtuose. É o cool, enfim.

O amadurecimento anterior de Miles ocorrera à sombra de Charlie Parker, o canário alimentado à speed ball, que esgotou o jazz com sua fúria de meter 64 notas por compasso. É o bebop, enfim. Quando sai para montar sua própria banda, ele persegue a direção oposta e encontra o parceiro ideal em Gil Evans - um arranjador que domina toda a tradição erudita, mas carrega a convicção de que "a música mais expressiva vem dos guetos, livre de teorização, caso exemplar do blues e do flamenco". 


A partir daí, ambos minam o jazz como reduto do instrumentista por excelência, e nasce o cool, onde importa o clima e o understatement (a frase que dispensa exclamações, seu forte são as reticências, o silêncio, o espaço aberto). O "tipo de blues" obtido segue a linha do argumento favorito de Brian Eno quando quer defender a música popular de sua "inferioridade" diante da erudita: a inovação existe sim, mas os bitolados a procuram no lugar errado - a harmonia - quando ela está na textura.

Tirando "Flamenco Sketches", o disco adota e/ou desmembra o blues tradicional de doze compassos, como suporte para essa busca e também para a espontaneidade que só a improvisação pode dar (desde que o ego seja deixado do lado de fora do estúdio).

A faixa de abertura, "So What", não emprega mais que duas escalas: é a redução máxima do disco, na estrutura modal típica dos cantos africanos de chamado e resposta. Na sequência, "Freddie Freeloader" apresenta o esqueleto do blues tradicional (numa transição quase imperceptível) que será progressiva e matematicamente desmontado até a última faixa, "All Blues". Aí o círculo fecha com uma série de cinco escalas, que podem ser percorridas durante o tempo que cada solista desejar. E ainda assim, ela sai redonda, melódica, concentrada na variação da textura, que acompanha os timbres do trompete - ora aberto, ora abafado - do homem que rege. Fora do círculo, "Flamenco Sketches" esboça o gueto que seria trabalhado no LP seguinte, Sketches of Spain, orquestrado por Gil Evans.

(Texto escrito por José Augusto Lemos, Bizz#016, novembro de 1986)

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