Numa data em que os supersticiosos não põem os pés fora de casa - 13 de agosto -, Curtis Mayfield sofreu um dos acidentes mais estúpidos na história das artes. Durante um show ao ar livre em Nova York, caiu sobre ele uma armação de jogo de luzes, fraturando três vértebras e deixando-o em coma, paralisado da cintura para baixo.
Como cantor, ele pertence à nobre linhagem que - capitaneada por Ray Charles e Sam Cooke - promoveu a transição do gospel ao pop. Ou seja, os pais do soul. Ao mesmo tempo, antecipa os artesãos auto-suficientes dos estúdios de gravação, de Marvin Gaye e Stevie Wonder a Prince - é bem capaz que sua influência como compositor, arranjador e produtor (particularmente na Jamaica dos anos 1960) seja maior do que como cantor.
A maioria identifica-o com o mega hit "Superfly" (tema do filme homônimo), dois milhões de cópias vendidas em 1972. Mas sua errática carreira solo comprova que sua melhor safra deve ser garimpada na década de sessenta, quando - no comando do trio vocal The Impressions - forjou o chamado soul de Chicago e tornou-se o porta-voz do movimento pelos direitos civis em hinos anti-racistas como "People Get Ready", "Keep on Pushing", “We Are a Winner", "Amen" e outros.
Adolescente ainda, Mayfield passou por grupos de gospel e doo wop - onde sedimentou a amizade e a pareceria com Jerry Butler, uma dupla inicialmente inseparável que formaria os Impressions em 1957. Imediatamente contratado pelo selo Vee-Jay, o grupo estrearia nas paradas americanas com um dos maiores clássicos do soul romântico: "For Your Precious Love", creditado no disco a Jerry Butler & The Impressions.
Mayfield não gostou nada disso, e a colaboração entre os dois só pôde continuar fora do grupo, com Curtis compondo e arranjando para a carreira solo de Butler, estabelecido como crooner e baladeiro de primeira. Resultados: a Vee-Jay acabou dispensando os Impressions, e o grupo quase foi extinto.
Assinando, porém, com o selo ABC, Mayfield concentrou toda sua força criativa no que era, afinal de contas, o "seu veículo". Os outros dois cantores, Samuel Gooden (baixo) e Fred Cash (tenor), entraram apenas depois do primeiro hit - "Gypsy Woman" (1961) - e sempre se limitaram a obedecer as harmonias vocais tramadas por seu chefe. São de Mayfield ainda as marcas registradas do grupo: o falsete aveludado e uma guitarra bluesy esparsa, bordando com máxima economia bases instrumentais enxutas (o axioma soul de que o primeiríssimo plano pertence às vozes levado ao extremo).
Greatest Hits cobre o período inicial da banda (desfeita em 1970), os anos 1961-1965, e não é uma coletânea perfeita - faltam "For Your Precious Love" e o monumento "People Get Ready". Em compensação, amarra a fase inicial de um monstro sagrado da música negra americana - amparado ainda por Johnny Pate, responsável pelos arranjos de metais.
O modelo da alquimia aparentemente simples e despretensiosa de Mayfield e Pate é escancarado em “It's All Alright" (1963): guitarra e sopros acentuam um contratempo quase bêbado, enquanto as três vozes melodiosas pregam e consolam no mais vigoroso espírito gospel: "Quando você acordar cedinho de manhã / sentindo-se triste como muitos de nós / cantarole um pouco de soul, tome a vida o seu gol / e algo certamente terá de aparecer para você.”
Texto escrito por José Augusto Lemos e publicado na Bizz #066, de janeiro de 1991
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