Nós, seres humanos, somos jogados nesse mundo sem nada compreender e cheios de confusão, confusão que só faz aumentar quando a passagem dos anos não traz consigo nenhum sinal de sentido. Pois é. Porém, se a luz do esclarecimento for inalcançável afinal, ao menos através da poesia podemos entrar em contato com um estado de, digamos, "reconhecimento".
Articulando na forma escrita toda essa peculiar barafunda, onde prazer e dor e alegria e tristeza convergem e se alternam de maneira tão curiosa, o poeta se presta à (muitas vezes ingrata) tarefa de encarnar uma persona literária que dá voz e forma a tais sensações conflitivas. Por outro lado, que tarefa inglória a do poeta, de se fazer entender!
Dylan, recente Nobel em literatura, por exemplo, é repetidamente e veementemente retratado como um dos principais baluartes da "canção de protesto". Ele, por sua vez, diz que não tem nada a ver com isso. "Minhas canções são sobre a vida", afirma, "política é um dos assuntos que não me interessam em nada". Enquanto isso, ao som de "Blowin in the Wind", uma lagriminha cheia de esperança escapa do olho direito e percorre o rosto comovido do idealista militante político. Leonard Cohen, outro célebre bardo judeu, também encontra problemas no que diz respeito ao entendimento do que escreve, só que, diferente de Dylan, que faz pouco esforço para se explicar, Cohen não faz esforço nenhum.
O mundo literário concebido pelo canadense é permeado pelo forte sentido de inevitabilidades, por angústias dilacerantes e heróicas imagens de desdouros bíblicos, o que acabou atraindo para ele uma imagem grave, austera e solene, que na realidade passa longe do real Leonard, que sempre retratou tais temas despejando sobre o ouvinte jorros tórridos da mais cáustica e fina ironia, do mais cortante (e dependendo do qual sensível você seja, vez por outra, inadequado) senso de humor e do mais impassível sarcasmo.
Mas, como foi afirmado anteriormente, ele nada faz quanto a isso - inclusive, aposto que gosta. Deve se divertir um bocado com o contraste. Cohen é um fanfarrão, é da bagunça, mistura o divino, o erótico, a melancolia, a ironia, o lírico e o indiferente e observa o mundo queimar com um sorrisinho nos lábios. Cronista, ao mesmo tempo, impassível e complacente, Leonard Cohen nunca procurou se enfeitar de belezas alheias, conseguindo empatia imediata de quem, assim como ele, não tentava ser nada mais que humano; simples e unicamente humano, buscando prazer e alegria, tendo de enfrentar seus próprios ônus, buscando desesperadamente por um Deus que nunca aparece... e se atendo ao seu próprio estilo, conseguiu alçar-se à posição de "poeta pop" fazendo sempre o que quis e quando quis (e poderia ter conseguido muito mais se tivesse sido mais flexível).
You Want It Darker é seu novo álbum de estúdio, o décimo-quarto de sua notável carreira. Lançado no alto se seus 82 anos de idade, mostra que a matéria até pode desvanecer, mas sua essência persiste, tão imponente quanto sempre.
A atmosférica faixa-título, que dá início ao disco, é conduzida por uma sutil e competente linha de baixo e sustentada por sublimes vocalizações de coral, órgão e sintetizadores. E então a voz, grave e profunda, surge encarnando o mundo de martírios, conflitos e sarcasmo onde o bíblico e o mundano se misturam e não se sabe mais o que é divino e profano. A impassibilidade de "santificado e exaltado seja o teu nome / crucificado e desprezado quando na forma humana / um milhão de velas queimando por uma ajuda que nunca veio" e depois, o humor fino de "eu batalho contra alguns demônios / eles eram de classe média e conformados", convivendo dentro da construção poética, dá o vislumbre da maneira leonardiana de se expressar.
Como sendo a passagem da noite para a madrugada (mas ainda longe do alvorecer, bem entendido), as densas sombras da faixa anterior se dispersam (um pouco) para dar lugar à honestidade pungente de "Treaty", que traz uma construção mais orgânica, conduzida ao piano e ornamentada por arranjos orquestrais. Tente não se comover com versos como "eu vi você mudar da água pro vinho / te vi virar água de novo, também", "estou irritado e cansado o tempo todo / queria que houvesse um acordo entre o seu amor e o meu" e "nós nos vendemos por amor, mas agora estamos livres / eu sinto tanto pelo fantasma que te fiz se transformar / apenas um de nós foi real e este fui eu".
A linda "On the Level", onde o gospel flerta com o country, dá prosseguimento com doses ainda mais massivas de tocante lirismo. A melódica e singela "Leaving the Table” com seus atavios certeiros, e "If I Didn't Have Your Love", outra pérola de elevada beleza, vêm na sequência, dando lugar ao cabo à "Traveling Light", com seu belo flerte com o exótico por meio de violas e violinos. A climática "It Seemed the Better Way" e a lindíssima "Steer Your Way", com suas encantadoras cordas harmônicas, reconduzem o disco pelos caminhos do mistério. O álbum, por fim, remata com uma reprise da segunda música, "Treaty", adicionada de primorosa introdução de violino.
Recentemente, Leonard afirmou estar "pronto para morrer". Tirando uma ou outra alusão nesse sentido da morte (que sempre esteve presente em sua obra), o álbum não parece ter nenhum intento de servir como testamento. Soa, antes, como uma expressão viva de um artista vivo e com fôlego de inventividade. Nada mais normal. Cohen é um eloquente bon vivant, quando olha para trás para versar sobre o ido, ainda mantém o olhar no futuro. E o futuro aqui é tão obscuro quanto sempre foi.
Enquanto muitos esperavam um disco para a morte, Leonard entrega mais um álbum para a vida, como sempre fez.
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