O selo Terra Um reúne graphic novels onde personagens clássicos da DC são reimaginados em um universo paralelo. Ou seja, é algo totalmente fora da cronologia oficial, o que permite mais liberdade criativa para que os autores possam fazer o que bem entenderem com ícones da cultura pop que possuem mais de sete décadas de vida.
Nos Estados Unidos, a série estreou em novembro de 2010 com Superman: Earth One, escrita por J. Michael Straczynski e desenhada por Shane Davis. Na sequência vieram as novas versões do Batman, Novos Titãs e Mulher-Maravilha. Aqui no Brasil, a Panini já lançou dois encadernados de capa dura para as histórias do Superman e do Batman - escrito por Geoff Johns e desenhado por Gary Frank -, enquanto os Novos Titãs de Jeff Lemire e Teddy Dodson seguem inéditos.
O assunto aqui é Mulher-Maravilha: Terra Um, lançado recentemente no mercado brasileiro. A história foi escrita por Grant Morrison (Superman Grandes Astros, Asilo Arkham, Homem-Animal) e ilustrada por Yanick Paquette (Corporação Batman, Sete Soldados da Vitória, X-Men: Guerra Civil), e saiu no mercado norte-americano em abril de 2016. A edição nacional copia a americana nos mínimos detalhes, e traz toda a trama desenvolvida até agora acondicionada em capa dura.
Em relação ao roteiro, Grant Morrison reconta a origem da Mulher-Maravilha através de um recurso narrativo interessante: um julgamento. Diana é chamada de volta à Ilha Paraíso por sua mãe, Hipólita, a Rainha das Amazonas, após fugir de Themyscira e passar um tempo no mundo dos homens. Essa ação da Princesa das Amazonas é motivada pelo desejo sempre presente de fazer e conhecer mais do que apenas o terra de suas irmãs e pelo fato de Diana encontrar um homem - pela primeira vez na vida -, o piloto Steve Trevor, após a queda do seu avião.
Na releitura de Morrison, Trevor é negro, o que gerou discussões infundadas entre os fãs. Se é um mundo paralelo, qual o problema do coadjuvante mais conhecido da Mulher-Maravilha ser negro? Racismo reprimido? Menos gente, menos.
Grant Morrison explora de maneira constante durante toda a história o aspecto sexual onipresente em uma ilha habitada apenas por belas mulheres. As ilustrações mostram, de tempos em tempos, quadros com orgias cheias de personagens, além da presença de diversos elementos de bondage compondo os figurinos. Correntes, couro, chicotes e outros elementos pipocam nas páginas, e muitas vezes de maneira pouco sutil. O ponto final nessa pegada proposta pelo escritor são as expressões de Diana, que invariavelmente surge nos quadros da história com caras e bocas sensuais, em uma tentativa de imprimir um clima de lascivo em toda a HQ. No início isso até funciona, mas aos poucos esse recurso vai se tornando cansativo e, no final das contas, revela-se apenas gratuito e sem sentido.
Outro ponto que gera discussão em Mulher-Maravilha: Terra Um é o texto de Morrison, que coloca um discurso explicitamente feminista na boca de praticamente todas as personagens. É claro que o apelo feminista faz parte da história e da trajetória da Mulher-Maravilha, que foi criada para ser uma mulher à frente do seu tempo, como um elemento para mostrar a um mundo predominantemente machista que uma mulher poderia fazer qualquer coisa e não ficava atrás do homem em nenhum aspecto - pelo contrário: em muitas situações, estava muito à frente dos portadores do cromossomo Y. No entanto, Grant Morrison até tenta, mas só consegue deixar o texto da história chato e sem profundidade, repetindo clichês há muito deixados de lado pelo feminismo. Só para fazer um paralelo, enquanto séries como Lumberjanes e Miss Marvel falam sobre o assunto de uma maneira muito mais orgânica, dinâmica e natural - e não por acaso alcançam impacto muito maior -, o tom empregado por Morrison em Terra Um mais parece um grande textão do Facebook escrito por alguém com uma visão radical. E isso, meus amigos, faz com que muito da força da HQ se perca.
Em relação à arte de Yanick Paquette, temos uma Diana linda como nunca. E aqui vale citar uma curiosidade: a inspiração para o rosto da Princesa foi a ex-atriz pornô Sasha Grey, atualmente DJ e escritora. O traço do artista faz a Mulher-Maravilha surgir voluptuosa e sensual em todas as páginas, fator que, somada às caras e bocas já citadas, acaba também depondo contra. No início funciona, daí vai cansando, e quando nos damos conta percebemos que não passa de um recurso apenas gratuito. No entanto, Paquette supera esse aspecto a retratar uma Themyscira belíssima e cheia de detalhes, repleta de referências à milenar arquitetura grega.
Outro fator muito agradável da arte é o fato de termos páginas e páginas onde a divisão dos quadros não segue o padrão comum das histórias em quadrinhos. Ao invés de quadros fechados com ações independentes, Yanick Paquette faz complexas páginas duplas onde as diversas situações que estão acontecendo são divididas ora pelo Laço da Verdade de Diana, ora por vegetações, ora por outro elemento que faça sentido com o assunto abordado naquele momento. E o resultado são quase pequenos pôsteres a cada nova virada de página, transmitindo uma ótima sensação para o leitor.
Um outro aspecto que gera justas discussões é o fato de a história não apresentar uma conclusão. Ao final do julgamento de Diana, onde durante o processo somos apresentados às suas experiências no mundo dos homens e aos personagens que ela encontra pelo caminho, temos uma resolução bastante óbvia e que, na verdade, não conclui coisa nenhuma, deixando tudo extremamente aberto para uma continuação. Não que isso seja necessariamente ruim, mas como a volume 2 ainda não saiu nos Estados Unidos, é bastante provável que a sequência demore muito pra chegar por aqui.
Finalizando, Mulher-Maravilha: Terra Um fica bem abaixo da expectativa. Apesar da arte incrível de Yanick Paquette, a reimaginação proposta por Grant Morrison, além de não apresentar grandes novidades, escorrega em clichês gratuitos e em um discurso extremamente panfletário, fazendo com a leitura seja cansativa além da conta.
Se você quer ler algo interessante da Mulher-Maravilha para entrar no clima do filme da personagem, que sairá este ano, a recomendação ainda é a mesma: vá atrás dos encadernados que a Panini está publicando com a trama escrita por Brian Azzarello para a Princesa Diana. Já saíram dois por aqui - Sangue e Direito de Nascença -, e ambos são excelentes e retratam a personagem de maneira muito mais contundente e cativante do que a ideia proposta por Morrison em Terra Um.
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