Música Urbana, a loja de discos de João Pessoa


Gosto de imaginar que cada cidade possui um templo da resistência, um lugar - normalmente tocado por um guerreiro da cena - que se recusa a morrer, apenas pela lacuna que deixaria na cidade.  Sem seu templo, a cidade finalmente terá cedido ao progresso predador que uniformiza e engole as tribos urbanas. Por isso, esses sujeitos são mais do que microempreendedores, eles cumprem uma função social messiânica:  enquanto viverem, e seus templos, a cidade viverá. Não sei se é exatamente assim em toda cidade. Nem sei quantos pequenos Messias ainda resistem. 

O que eu sei é que, como qualquer experiência religiosa, a primeira epifania é inesquecível. O meu momento da revelação veio quando eu tinha 14 anos. Um jovem adulto, com trocados no bolso, que saía do colégio bradando ser uma enciclopédia do metal com a arrogância típica de quem não conhece nada. Foi quando fui levado por um amigo - sempre um sujeito mais velho, sempre um guru - ao templo da resistência  da cidade de João Pessoa. A Música Urbana fica no coração do centro da cidade, numa região já abalada pelo crescimento da cultura dos shoppings e ainda mais pela decadência da indústria musical.


Eu costumava comprar meus CDs nas grandes lojas online, Submarino e Americanas eram as favoritas. Eu já conhecia seus estoques, limitados, de cor, por isso, atravessar aqueles portões causou uma verdadeira revolução espiritual em mim. Ter a oportunidade de conhecer um desses templos faz parte do crescimento musical de qualquer colecionador ou admirador da música. As conversas, recomendações, amizades que surgem, só se comparam às descobertas que ocorrem ao dedilhar as prateleiras. Essa comunhão, para mim, passou a surgir semanalmente. Uma passadinha rápida, uma olhadinha nas prateleiras, novidades, e sempre um tesouro levado pra casa.



Vez por outra se ouve a voz do messias, do sacerdote que cuida do templo. Nesse caso, o quieto Robério, que sempre achava espaço para dizer algo do tipo "chegou um power metal aqui...". Poucas visitas foram necessárias para que ele compreendesse o meu gosto musical. Nunca me recomendou um disco que não fizesse sentido. O pastor é assim, conhece as ovelhas pelo nome. Lembro de cada disco que comprei na Música Urbana, outros tantos que deixei por lá. Nunca paguei caro por um disco lá, por vezes, me perguntei como aquilo era possível. Com o tempo, entendi que o dinheiro tinha uma função secundária na Música Urbana. Importante, mas não fundamental.


Hoje, tenho uma coleção grande, são mais de 400 itens. Me especializei, li, fiz um doutorado. Mergulhei no mundo da música e me tornei mais entendido e, curiosamente, menos arrogante. Quando piso nesse templo, no entanto, volto a ser um moleque de 14 anos que perguntava "esse tal de Kamelot é bom?". Como fiz na primeira vez, com o primeiro disco que comprei por ali.



Com o tempo, a cidade murchou, migrou em direção à praia, e o centro foi ficando empoeirado. Os CDs e vinis da Música Urbana continuam lá. O sacerdote, Robério, continua os organizando, ao lado de HQ's, livros e miniaturas. O templo ampliou os horizontes, mas manteve seu espírito. Continua um lugar humilde, até meio apertado pelas prateleiras e clientes. Parece que não foi feito para caber muita gente. E nem precisa. As lojas ao redor já estão de portas fechadas. A economia não foi gentil com elas. O que só prova que a Música Urbana é mais do que um estabelecimento comercial. O templo se mantém vivo pela fé. A fé na música como um elo que conecta aqueles que acreditam nela. Que tem suas experiências auditivas solitárias, em casa, com fones, mas que sentem a necessidade de externar e compartilhar essa fé e que, por isso, precisam de um altar. Sei bem da quantidade de fiéis que encontro na rua, e trocamos aquela saudação silenciosa, um balançar de cabeça de quem não é íntimo, mas sabe, e na cabeça ouve "nos vemos no sábado, na Música Urbana".


Hoje, a loja que é mais que loja é mais que um templo. É um reduto formal da resistência pessoense. Tornou-se espaço para shows, no espaço que nem tem. Seu altar é do lado de fora, sua plateia são os fiéis clientes e amigos, sua comunhão são os vinis, CDs e, eventualmente, uma cervejinha. E o sermão vem sempre de uma tirada sarcástica e não menos espiritual do seu sacerdote, Robério.


Não sei dizer por quantos anos mais a Música Urbana estará viva, bem no centro de João Pessoa, mas arrisco dizer que, enquanto correr música na veia de alguém, por aqui, ela será bombeada para o coração da cidade. E como o homem é feito de corpo e de alma, ela irá convergir para esse templo, e a fé não morrerá.


Por Fábio Nobre, do Unlimited Decibels

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