Ler quadrinhos no Brasil está virando privilégio de poucos, e não pode ser assim


Histórias em quadrinhos sempre foram uma mídia barata e de massa. Foi através dos gibis que gerações se apaixonaram pela leitura e seguem tendo o primeiro contato com a literatura. No entanto, o mercado brasileiro parece andar na contramão com diversos movimentos que encarecem e restringem cada vez mais o consumo de HQs. O último e mais impactante desses fatos foi o aumento de 45% em média aplicado pela Panini em seus encadernados. E agora, José?

Pensando sobre o assunto, lembrei da minha relação com a música e com o consumo de seus formatos físicos. Tenho aproximadamente 2 mil CDs em casa e há anos parei de comprar discos, com pequenas e pontuais exceções. O motivo é simples: o preço dos CDs está muito caro e eu me recuso a pagar mais de R$ 30 por um disco. A solução? Migrei totalmente para os serviços de streaming, onde a mensalidade de R$ 16 me dá acesso a uma quantidade quase infinita de álbuns. Não vou nem falar dos vinis, cuja especulação faz com que discos detonados e em estado deplorável sejam vendidos a quase R$ 200 Brasil afora. E pior: tem gente que paga por isso. Portanto, a minha solução foi simples: não quero pagar o preço por achar caro e encontrei uma alternativa adequada para o problema.

Em relação aos quadrinhos, a questão também é parecida. Por mais que qualquer empresa possa aplicar os preços que desejar em seus produtos, é a lei da oferta e procura que define o quanto um produto vale na prática. É o mercado, o leitor, que responde se uma edição com 296 páginas em capa dura de Escalpo realmente vale os R$ 120 pedidos pela editora.


Toda essa discussão passa por diversos aspectos. O mercado brasileiro de HQs foi inundado por uma avalanche de edições luxuosas e em capa dura nos últimos anos, potencializada sobremaneira pela chegada das coleções da Salvat e da Eaglemoss, dedicadas respectivamente a clássicos da Marvel e da DC. A resposta dos leitores a essa iniciativa foi positiva, com tudo vendendo bem, apesar dos preços altos e das edições um tanto quanto mal feitas e cheias de erros de ortografia tanto da Salvat quanto da Eaglemoss. Ao mesmo tempo, essa aceitação do mercado fez com que outras editoras intensificassem a oferta de produtos com acabamento premium, com Mythos, Devir e até mesmo a Abril com suas edições luxuosas da Disney entrando com força no segmento das HQs de luxo, isso sem falar na chegada de novas editoras como a Pipoca & Nanquim e a Geektopia.

Outro ponto que precisa entrar na discussão é que as editoras parecem lançar itens apenas para leitores adultos. Não existe uma renovação de leitores, e isso é um fator preocupante. Tenho um filho de 9 anos de idade, e não existem quadrinhos de super-heróis para ele ler. Ele adora HQs, mas só lê One-Punch Man e os títulos das Graphics MSP. Os títulos da Marvel e da DC, além de trazerem tramas mais adultas e complexas, exigem o entendimento e o conhecimento de décadas e décadas de uma cronologia intrincada e confusa. São poucos os títulos de ambas as editoras dedicadas ao público infantil e pré-adolescente, como Franklin Richards: Filho de um Gênio e Pequena Gotham. Eu comecei a ler HQs com 10, 12 anos. Do jeito que vai, não sei se o Matias começará a ler quando chegar nessa idade. A Marvel e a DC possuem títulos para o público adolescente como Miss Marvel, o Homem-Aranha Miles Morales e Academia Gotham, mas abaixo disso a coisa fica bem díficil. E não preciso nem comentar que uma criança de 10 anos não tem 120 reais pra pagar em uma revista em quadrinhos, né?


Há ainda outro fator. A chegada da Amazon, a maior empresa de varejo do mundo, alterou drasticamente o mercado brasileiro de quadrinhos. Praticando descontos agressivos e uma política de relacionamento eficiente com os principais influenciadores do setor (onde encaixam-se principalmente os mais conhecidos canais brasileiros dedicados a quadrinhos no YouTube), a gigante norte-americana rapidamente conquistou e consolidou uma enorme base de clientes, que migraram para as compras online principalmente devido aos preços muito menores. Esse fator, aliado ao crônico problema de distribuição que o segmento sempre apresentou, transformou a Amazon no principal canal de vendas do setor, ao ponto de se um título não estiver disponível em seu sistema provavelmente ele será um fracasso de vendas. 

O aumento em média de 45% aplicado pela Panini em seus novos encadernados não possui uma justificativa sólida e nem oficial, já que a editora até agora não se pronunciou sobre o fato. Isso levou a uma reação dos leitores, que estão se unindo e lançaram uma campanha para que as pessoas parem de comprar os títulos da editora. Como explicado nos parágrafos anteriores, o problema não é só da Panini mas do mercado como um todo, mas é claro que quando essa questão chega à principal editora, dona de mais de 80% do mercado nacional de quadrinhos e que tem em seu portfolio todos os títulos da DC e da Marvel, tudo toma uma dimensão muito maior. 

Alguns estão questionando o (quase) monopólio da Panini no mercado, de que isso está afetando muito a política de preços da editora. Porém, se esquecem de que há outro (quase) monopólio em crescimento constante e agressivo, e ele atende pelo nome de Amazon. Não comprar os títulos da Panini até que eles tenham desconto de 40% na Amazon não é solução para o problema, até porque esse aumento no preço de capa dos títulos tem muito a ver com a política agressiva de preços praticada pela gigante norte-americana, como já mencionado antes. Além disso, é preciso citar um fator muito importante: o abocanhamento de parcelas cada vez maiores do mercado pela Amazon ameaça agressivamente a sobrevivência das bancas de revistas em todo o Brasil, que não têm como competir com os preços dos norte-americanos. E isso pode levar, como já está levando inclusive, à diminuição e ao consequente fechamento de inúmeras bancas por todo o país. Isso é algo que me entristeceria muito e que não gostaria de ver, porque o fechamento de bancas significa a perda de um local legal dedicado à leitura e aos quadrinhos.


Mas qual a solução para tudo isso? A primeira é não comprar títulos que na sua opinião estejam com valores acima do aceitável. Não adianta reclamar e ficar só no discurso. Quero Escalpo, mas não pagarei este preço. Queria muito Batman Ano Zero, mas não iria pagar R$ 120 por ele e não peguei. Só fui comprar quando encontrei em um sebo por R$ 40. Queria ler Noite de Trevas mas não iria pagar R$ 72, peguei porque tinha pontos no programa de fidelidade de uma rede de livrarias e me custou apenas R$ 22. Quadrinhos não são artigo de primeira necessidade, há muitas outras prioridades mais importantes.

Outro ponto é que o aumento de preços fará com que as escolhas sejam mais restritivas na hora da compra. É preciso escolher o que comprar, deixando de lado títulos apenas medianos ou que temos uma pequena simpatia e focar apenas no que realmente gostamos e queremos ter em casa.

E há ainda a alternativa de migrar para os formatos digitais. No Brasil existe uma plataforma chamada Social Comics, uma espécie de Netflix dos quadrinhos que, mediante um valor mensal baixo, dá acesso a centenas de títulos para ler online. O problema é que os títulos das duas principais editoras (Marvel, DC e seus afiliados, como Vertigo), não estão disponíveis ainda. Outro ponto é apelar para os sites de scans, que apesar do combate da Panini ainda estão vivos e fortes. E ainda é possível migrar para os encadernados importados, que muitas vezes estão com preços mais baixos que os nacionais (até porque, ao contrário do nosso mercado, o formato de luxo não é o padrão por lá), ou para plataformas online que disponibilizam os títulos em inglês. E é claro, ainda temos os sebos, com centenas e milhares de títulos usados legais pra caramba com preços mais legais ainda.

É claro, você pode simplesmente seguir comprando, afinal o dinheiro é seu e, se você tem condições para isso, ninguém tem o direito de criticar a sua escolha. Mas o fato é que toda essa realidade gera diversas discussões e diferentes pontos de vista, todos em busca de uma solução que agrade os dois lados da moeda, oferencendo títulos a preços justos para os leitores e que também sejam atraentes para as editoras.

Para encerrar, coloco abaixo alguns vídeos gravados por canais de quadrinhos falando sobre o assunto e trazendo outros pontos para a discussão:


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