Tenho a mania de fuçar nos sebos de discos usados. E também de revirar ofertas nas chamadas lojas populares. É um hábito antigo, que já me rendeu descobertas inesperadas. A inaugural foi nos idos de 1974, num desses saldões. Entre duplas sertanejas e galãs bregas, encontrei duas coletâneas de Velvet Underground! Eram da série Pop Giants (com medonhas capas-padrão), do selo Polyfar - da atual PolyGram. Um encalhe que valia outro, pois até então nenhum outro trabalho do grupo tinha sido editado no Brasil.
Dei de cara com achado semelhante alguns anos depois, ao me deparar outras duas jóias raras, disfarçadas de artigos em liquidação: No More Heroes e, especialmente, Black and White, do quarteto inglês The Stranglers - que não se sabe porque cargas d´água foram lançados aqui pelo selo Copacabana, logo após as edições originais. O som dos caras já impressionava no primeiro disco, que tinha como mote a iconoclastia da faixa-título (que, citando de Leon Trotsky a Sancho Pança, proclamava não haver mais heróis), mas no álbum posterior era ainda mais poderoso.
Na época, só havia edições nacionais de alguns poucos discos do emergente punk rock (a coletânea bazuca A Revista Pop Apresenta o Punk Rock, Never Mind the Bollocks dos Sex Pistols, The Clash com seu primeiro álbum), mas os estranguladores soavam diferentes. Ao ataque punk eles uniam um som depurado, em que a simplicidade do vocal e da guitarra de Hugh Corwell somava-se às firulas tecladísticas bem dosadas de Dave Greenfield, ao baixo de Jean-Jacques Burnel e à bateria de Jet Black embaçando a moldura sonora.
Os "homens de negro" (como eles se autodefiniam) eram umas figuras um tanto bizarras. Pareciam estar no lugar certo e na hora certa - ou melhor, chegaram antes, pois seu álbum de estréia (Rattus Norvegicus, lançado em abril de 1977) era anterior à explosão do punk britânico. Porém, eles tinham a fachada errada, mesmo naqueles tempos da anarquia.
Para começar, se o perfil dos punks era notoriamente juvenil, eles eram velhões: Cornwell havia desistido de ser professor de química para tornar-se guitarrista e junkie em tempo integral. Burnel (músico de ascendência francesa, apesar de ter nascido em Londres) também tinha largado seu curso de história, enquanto Jet Black era sorveteiro antes de manejar as baquetas. Através de um anúncio na Melody Maker (que requeria um tecladista para um grupo de soft rock), eles entraram em contato com Greenfield. O quarteto tinha uma formação esquisita, mas que acertou na mosca com a combinação musical, tanto que foram incorporados prontamente ao movimento punk, apesar de frequentemente acusados de sexistas e de machistas - por colocarem strippers girls em seus shows, por exemplo.
A música era agressiva nas cordas, nas letras e nos vocais. Mas ao mesmo tempo eles se permitiam fazer digressões psicodélicas à la The Doors ou até mesmo a pequenos toques de música clássica, dados pelo tempero dos teclados. Esta mistura chegou em ponto de bala no terceiro álbum, Black and White. Com algumas das canções mais emblemáticas do grupo ("Nice ´n´ Sleazy", "Threatened", "Toiler on the Sea"), o disco ainda tratava com cinismo e deboche temas militaristas ("Tank", "Curfew"), consumismo ("Outside Tokyo") e até o pretenso chauvinismo deles - "Do You Wanna", "Death and Night and Blood (Yukio)". Tudo disposto em instantâneos de luz e sombra, num contraste que era sugerido pela própria apresentação do álbum. Outros trabalhos musicalmente mais sofisticados do grupo surgiriam depois - como os álbuns The Gospel According to the Meninblack (1981), La Folie (1981) e Feline (1983) -, todos muito bons, é verdade, mas sem a mesma pegada de Black and White.
Depois, o grupo teve êxitos esparsos, até sofrer pesada baixa com a saída de Cornwell, em 1991. Mas não importa: o retrato definitivo dos estranguladores já tinha sido tirado em 1978, em preto e branco.
Texto escrito por Celso Pucci e publicado na Bizz #100, de novembro de 1993
Comentários
Postar um comentário
Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.