A crise do mercado editorial brasileiro e as consequências que ela pode trazer


O mercado editorial brasileiro, principalmente o de quadrinhos, passa por um momento delicado. O mais recente sintoma foi o anúncio de que a Mythos, a segunda maior editora de HQS do país, decidiu parar de enviar os seus itens para a Saraiva, uma das maiores redes de livrarias do Brasil. O motivo? Curto e grosso: falta de pagamento.

Todo esse processo pode trazer consequências profundas na forma como os quadrinhos - e por extensão os livros, que utilizam praticamente a mesma rede de distribuição e vendas - são comercializados aqui nesse grande e confuso pedaço de terra tropical.

Para entender melhor tudo que está acontecendo, abaixo estão alguns tópicos que apresentam os principais fatos dessa cronologia:

- a partir de 2014, a Amazon, maior rede varejista do planeta, começou a vender livros e HQs no mercado brasileiro. E, como forma de conquistar os leitores, adotou uma política de preços bastante agressiva, com descontos monumentais que fizeram os preços de capa caírem consideravelmente. Os maiores players do segmento na época - Saraiva, Cultura e FNAC - foram alertadas por especialistas a respeito do tsunami que estava vindo na forma da Amazon, mas não reagiram e não traçaram nenhuma estratégia específica patra combater a gigante norte-americana

- aos poucos, passou-se a levantar a hipótese de que a Amazon estava fazendo dumping, que é vender produtos com preço abaixo do custo para conquistar e fidelizar consumidores, estratégia semelhante a que adotou em diferentes mercados em todo o planeta. As demais redes, especialmente a Saraiva, tentaram fazer o mesmo, mas esbarraram em um pequeno detalhe: enquanto na Amazon isto estava previsto e era uma estratégia com fluxo de caixa previsto para ser implementada e dar certo, na Saraiva o caixa não era suficiente. Resultado: a rede, que já tinha uma dívida imensa, apenas aumentou o seu déficit, e hoje especialistas calculam que serão necessários ao menos 12 anos para que a Saraiva consiga quitar as suas dívidas com todos os fornecedores

- no Brasil, os quadrinhos chegam até os leitores de duas maneiras: através das bancas ou pelas livrarias, megastores e gibiterias. Em relação às bancas, o monopólio da distribuição está no Grupo Abril, que é o dono da maior distribuidora de revistas do país. E esse braço distribuidor, como tudo que envolve a Editora Abril, passa por sérios problemas financeiros e está com o seu funcionamento comprometido

- neste sentido, as grandes redes de livrarias acabaram se transformando em canais de distruibuição para as editoras. E é aí que entra o problema: com exceção da Amazon, todos os outros grandes players do mercado - leia-se aí Saraiva, Cultura e FNAC -, não estão pagando as editoras. E, como todo mundo que estudou matemática sabe, quando você tem um custo para produzir um material, vende ele para uma distribuidora ou livraria e não recebe a grana, a conta simplesmente não fecha. Os pagamentos das grandes redes de livrarias para as editoras estão atrasados, em média, quase seis meses. É muita coisa, e é muito difícil manter um negócio vivo dessa maneira

- a FNAC anunciou no final de 2017 que estava deixando de operar no mercado brasileiros. A Livraria Cultura comprou a operação do grupo francês no Brasil, assumiu a sua dívida e vem mantendo as lojas abertas, porém diversas filiais da FNAC já comunicaram os seus funcionários que fecharão as suas portas nos próximos meses


- a Abril anunciou o fim das publicações da Disney, encerrando uma parceria de mais de 50 anos. O motivo, ainda que não tenha sido informado de maneira clara pela editora, passa pela enorme crise financeira e administrativa que vive o grupo, que outrora já foi a maior editora da América Latina. Ou seja: os quadrinhos da Disney, que formaram milhões de leitores em diversas gerações, não estão mais sendo publicados no Brasil. Fala-se que uma outra editora, provavelmente a Panini, estaria negociando o licenciamento com a Disney para voltar a publicá-los por aqui, mas não há nenhuma informação mais concreta sobre isso

- ainda sobre a distribuição, descontente com o contrato que tinha com a empresa do Grupo Abril, a Panini, que é a maior editora em atividade no país atualmente e responde por mais de 80% do mercado de quadrinhos, deu início à montagem de sua própria rede distribuidora. No entanto, atrasos na chegada dos títulos às bancas e outras questões estão fazendo a empresa italiana repensar essa estratégia, e isso está se refletindo no aumento de títulos encadernados em capa cartão enviados para venda na Amazon. Os títulos nesse formato antes eram exclusivos de bancas

- além disso, o Grupo Abril anunciou recentemente o cancelamento de mais de dez revistas, reduzindo o seu portfolio de títulos. Isso é um grande problema porque, em média, mais de 40% do lucro das bancas brasileiras vem da venda de títulos da Editora Abril. De novo: sem venda, sem dinheiro, não dá para manter um negócio ativo. Nesse caso, infelizmente o futuro não é promissor e não será surpresa se um grande número de bancas fecharem as portas nos próximos meses

- seguindo o caminho adotado pela Mythos, outras editoras como a 34, Ubu, Companhia das Letras e Sextante também não estão mais enviando seus títulos para a Saraiva. É muito provável que, devido aos problemas de pagamento, a Panini também retire todos os seus títulos da Saraiva nas próximas semanas. Em relação à Livraria Cultura, a situação não é muito diferente e uma rápida visita a qualquer uma de suas lojas físicas deixa evidente que diversas editoras não estão mais trabalhando com eles. As celebradas mega promoções feitas pela Saraiva nas últimas semanas, vendendo e "torrando" quadrinhos da Panini a preços muito abaixo do valor de capa, estão sendo interpretadas por setores do mercado como uma estratégia para zerar o estoque de HQs da editora nas unidades da rede, seja online ou nas lojas físicas


- a editora Salvat, que publica as coleções de graphic novels da Marvel e outros títulos, retirou seus produtos das bancas por tempo indeterminado, informando que os motivos são “alheios à editora”. A JBC, principal editora brasileira especializada em mangás, também retirou diversos de seus títulos das bancas e está vendendo-os somente em livrarias. Além disso, a JBC anunciou o lançamento de um serviço de quadrinhos online para os leitores 

- publicações destinadas a empresários publicaram diversas matérias informando que a Amazon está trabalhando em uma estratégia para adquirir tanto a Saraiva quanto a Cultura, transformando-se na única grande rede de livrarias em operação no país

- some-se a tudo isso a diminuição do consumo de revistas em formato físico, com uma parcela considerável dos leitores migrando para o formatos online e digital, e temos o ingrediente que faltava em todo esse caldeirão

- finalizando: todo esse processo não está restrito somente ao mercado de quadrinhos e afeta todo o segmento editorial brasileiro, refletindo em bancas, gibitecas, livrarias, livros, revistas, gráficas, indústrias de papel e toda a cadeia produtiva do setor

Enfim: se você gosta de quadrinhos, se você consome livros e se você não vive sem o hábito da leitura, é bom ficar de olho no que está acontecendo no mercado, porque os próximos movimentos e ações ditarão uma provável grande mudança no modo como as publicações chegam aos leitores brasileiros.

Comentários

  1. Boa noite amigo,

    Excelente texto contextualizando o mercado atual.

    Se tiver um momento https://youtu.be/kjfaSTdiK-k veja esse vídeo ele tem algumas frases quase que iguais ao do seu texto.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.