Miles Davis causando uma explosão sonora na terra do sol nascente


Tá certo que escutar Miles Davis é o antídoto perfeito para combater o stress, relaxar e mergulhar profundamente nas ondas do jazz. Mas em algumas circunstâncias, os efeitos colaterais de tal audição podem ser devastadores. Um bom exemplo é este Agharta (1975), composto explosivo fabricado no Japão, que traz o genial trompetista norte-americano em mais um momento de fúria jazzística. Atente para a possibilidade deste disco causar sérias dependências musicais e acelerar os batimentos cardíacos ... Aí então, meu camarada, o ataque sonoro rumo à outra dimensão será iminente.

De sua fase elétrica de álbuns fantásticos - e falo de uma época iluminada, um estágio avançado, onde Miles Davis mostrava a sua genialidade promovendo seguidas obras-primas como In a Silent Way (1969), Bitches Brew (1970), A Tribute to Jack Johnson (1971), On the Corner (1972), Big Fun (1974) e Get Up With It (1974), não me recordo de explosão sônica tão visceral e alucinada como essa.

Gravado em terras japonesas, no Osaka Festival Hall na tarde de 1° de fevereiro de 1975, Agharta é o primeiro de dois álbuns gerados no mesmo dia – o outro é o concerto noturno registrado no disco Pangaea, lançado em 1976. Ambos fazem parte da trilogia iniciada com Dark Magus (lançado em 1977 e que traz uma apresentação de 1974, em Nova York). Três LPs duplos muito bons, repletos de experimentações e improvisos, trazendo nos créditos quase a mesma formação. Mas o ápice demencial é mesmo este Agharta.


Plugando um trompete envenenado a um pedal wah-wah, o Príncipe das Trevas assombra uma multidão, construindo texturas atmosféricas repletas de efeitos e ecos, irradiando ondas elétricas jazzísticas por todos os lados. E o baque é forte: uma música agressivamente funky, com plena liberdade para improvisos coletivos a partir de alguns temas preestabelecidos. Seguindo essas pegadas, uma feroz tropa de choque pronta para implodir o jazz: Sonny Fortune (sax / flauta), Michael Henderson (baixo), Al Foster (bateria), Mtume (conga / percussão), Pete Cosey (guitarra / sintetizador / percussão) e Reggie Lucas (guitarra). Sai de baixo!

Disco duplo, cinco temas longos, sonoridade adrenalítica e caótica desprovida de qualquer tipo de harmonia. Começa denso e perturbador com os quase de 30 minutos de “Prelude” (partes um e dois), em uma demonstração insana de free jazz, com destaque para os solos selvagens de Davis, Fortune e Cosey. A performance de Cosey, por sinal, é um capítulo à parte: auxiliado por um conjunto de aparelhos de distorções eletrônicas, encarna Jimi Hendrix, solando de forma animalesca, chegando mesmo a fritar os dedos na guitarra. Em se tratando de jazz é nitroglicerina pura.

O álbum segue ameaçando breve trégua em “Maiysha” - providencial para os excelentes trabalhos de flauta de Fortune e percussão de Mtume. Prossegue suando frio pelos andamentos nervosos de “Interlude”, onde “So What” (faixa do lendário álbum Kind of Blue, de 1959) serve de parâmetro para um novo arregaço de improvisos espetaculares. E acaba em completa falta de ar, lá no fim do túnel, com “Theme From Jack Johnson”, num compasso mais frenético e nervoso que o apresentado em outras versões. No mínimo, perturbador! É o final apoteótico de uma maratona desenfreada pelos improvisos do jazz, com o septeto injetando solos desesperados e enfurecidos, experimentações sonoras ensurdecedoras, rock, funk, groove, plutônio, urânio … outra bomba atômica em solo nipônico!


Era desta forma - com um novo bombardeio de jazz supersônico - que o conturbado e irrequieto trompetista resolvera responder aos seus detratores. Acusado de ser um traidor do estilo - um músico que denegriu o jazz ao fundi-lo ao acid rock, blues, funk e aos experimentalismos da música contemporânea -, Davis mostrava cada vez mais não se importar com a opinião dos conservadores de plantão. Agharta (que teve edições lançadas com duas capas diferentes, como mostram as imagens deste post) comprova isso: um digníssimo “will be fuck” para os críticos e um “viva” para os fãs, que compravam seus discos a rodo e lotavam seus shows. Consagração total!

Após este registro, o trompetista ficaria cinco anos sem lançar discos ou fazer shows, se recuperando dos problemas de saúde relacionados ao seu intenso consumo de drogas e álcool. Só retornaria em 1981 com o lançamento de The Man With the Horn, iniciando o último ciclo de sua trajetória genial como músico.



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