Discografia Comentada: Casa das Máquinas



Formada em São Paulo em 1973, a Casa das Máquinas é uma das principais referências quando falamos do rock produzido no Brasil durante a década de 1970, ao lado de nomes como Made in Brazil, O Terço, A Bolha, Mutantes e poucos outros. O grupo surgiu a partir de outra lenda dos palcos nacionais, Os Incríveis, quando o guitarrista José Aroldo Binha e o baterista Luiz Franco Thomas, conhecido como Netinho, juntaram-se ao vocalista e guitarrista Carlos Roberto Piazzoli, o Pisca. O quinteto foi completado pela entrada do baixista Carlos Geraldo (que também cantava) e pelo multi-instrumentista Pique (piano, órgão, saxofone e flauta).

A Casa das Máquinas gravou três álbuns emblemáticos e históricos: Casa das Máquinas (1974), Lar de Maravilhas (1975) e Casa de Rock (1976). Este trio de discos é obrigatório para quem se interessa pelo rock nacional, e traz excelentes canções.


Casa das Máquinas foi lançado em pela gravadora Som Livre e teve a sua produção assinada por Eustáquio Sena, que tinha em seu currículo o clássico Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos, considerado pela Rolling Stone o melhor disco de um artista brasileiro em todos os tempos. Vale mencionar, como curiosidade, que a coordenação geral da produção ficou a cargo de João Araújo, pai de Cazuza e um dos mais poderosos executivos da indústria fonográfica nacional durante as décadas de 1970 e 1980.

A direção criativa da Casa das Máquinas sempre esteve nas mãos de Netinho, e neste disco de estreia isso fica evidente. Ainda tentando encontrar seu som, a banda alterna entre canções mais pesadas, outras onde a MPB toma a frente e momentos mais calmos. A música de abertura, “A Natureza”, possui um dos melhores riffs de guitarra da história do rock BR. Outros momentos bem rock estão em “Trem da Verdade”, “Cantem Este Som Com a Gente” e “Sanduíche de Queijo”, que fecha o trabalho. Percebe-se uma influência de Rolling Stones onipresente, ao mesmo tempo em que ecos da inocência da Jovem Guarda e um toque bem sutil da psicodelia dos Mutantes surgem aqui e acolá. “Tudo Porque Eu Te Amo” é o relato cantado do conflito de gerações vivido na época, uma balada em que Pisca faz uma declaração de amor ao seu pai enquanto narra as diferenças de vida e de pensamento entre os dois. Mas o momento mais icônico do álbum é a linda “Canto Livre”, composta por Lúcio Batista e adaptada pela banda de maneira sublime. Uma letra belíssima e que, na interpretação das Casa das Máquinas ganhou a sua versão definitiva.

Neste primeiro álbum, as composições foram criadas em sua maioria pela dupla Aroldo e Carlos Geraldo. A capa traz uma foto da banda com a maquiagem utilizada nos shows na época. O disco foi relançado em 2006 em CD dentro da série Som Livre Masters, que colocou de volta no mercado os grandes registros da gravadora. Essa reedição teve o som remasterizado e toda a sua produção foi coordenada por Charles Gavin, ex-baterista dos Titãs.


O quinteto rodou o Brasil e retornou um ano mais tarde com Lar de Maravilhas (1975), disco que demonstrou uma maturidade muito maior em relação à estreia. Netinho assumiu a produção, e isso se refletiu no clima do álbum. A sonoridade é datada, mas daquele jeito agradável e poeirento que marca os discos gravados durante a década de 1970. A formação de debut sofreu mudanças com a entrada de Marinho Testoni nos teclados, substituindo Pique, além da inclusão de Marinho Thomaz na bateria, dividindo o espaço com Netinho.

A abertura já mostra serviço com “Vou Morar no Ar”, uma das músicas mais conhecidas da banda, onde as linhas vocais se alternam entre mudanças de andamento instrumentais. O clima viajante da primeira música é mantido na esotérica faixa título. Outro ponto que fica evidente é o lado instrumental muito mais trabalhado, gerando canções mais elaboradas e com mudanças de dinâmica constantes. Além disso, em Lar das Maravilhas a Casa das Máquinas passou a ter os seus vocais divididos entre Pisca, Aroldo e Carlos Geraldo, então vozes dobradas e harmonias são uma constante.


Outro ponto que chama a atenção é o distanciamento proposital de qualquer aspecto que lembre, mesmo de maneira sutil, algo de música brasileira. Em seu lugar surge um rock claramente influenciado pelo progressivo tão em voga na época, com a guitarra dividindo o espaço com o teclado e composições com arranjos mais viajantes e atmosféricos. “Astralização” é o exemplo perfeito desse novo caminho. O rock mais direto fica em segundo plano e surge apenas em “Epidemia de Rock”, uma deliciosa música onde o destaque vai para a bateria de Netinho e para a letra.

Lar das Maravilhas é o álbum mais prog da Casa das Máquinas, com canções mais calmas e sem tantas explosões sonoras. A produção de Netinho funcionou bem, imprimindo um timbre pesado para os instrumentos e que soa legal até os dias de hoje. A capa traz uma ilustração criada pela Grão Comunicação Visual, enquanto João Araújo surge novamente como coordenador de produção. Em relação aos créditos, Netinho emerge como uma força criativa, dividindo os créditos da maioria das faixas com Aroldo e Carlos Geraldo. O álbum ganhou uma reedição em CD em meados dos anos 1990, e mais recentemente foi relançado pela Som Livre em CD em 2015 e em vinil pela Polysom em 2018.


Para o seu terceiro disco, a Casa das Máquinas chamou o engenheiro de som norte-americano Don Lewis, que dividiu a produção com Netinho. Isso se refletiu em um trabalho que tem o melhor som entre os três álbuns gravados pela banda, com destaque para as guitarras e a bateria. Carlos Geraldo deixou o grupo e o baixo foi gravado por Pisca, que também canta e toca guitarra. João Alberto assumiu o instrumento após a gravação, enquanto Simas estreou como a principal voz. Guto Graça Melo assumiu a direção de todo o material.

As dez faixas de Casa de Rock fazem jus ao título, naquele que é o álbum mais rock and roll da Casa das Máquinas. A banda deixou pra trás as experimentações progressivas de Lar de Maravilhas e em seu lugar veio com um rock cativante, com guitarras fortes e refrãos que grudam na cabeça. O disco mais maduro da banda traz um trabalho de composição muito mais desenvolvido, refletindo a maturidade de uma formação que já estava junta a alguns anos e que ficou mais forte com os shows e com a experiência.

Estão em Casa de Rock algumas das músicas mais conhecidas da Casa das Máquinas, como a imortal canção que batiza o disco e “Pra Cabeça (Jogue Tudo Pra Cabeça)”. Outros ótimos momentos podem ser ouvidos em “Estress”, “Londres”, “Dr. Medo” e “Eu Queria Ser”, enquanto o lado mais contemplativo da banda dá as caras em “Certo Sim, Seu Errado” e na bonita “Lei do Sonho de um Vagabundo”.

Netinho e Pisca dividem as composições ao lado de Catalau, que já havia contribuído no álbum anterior e mais tarde seria o frontman do Golpe de Estado. A arte da capa, criada pela dupla Sidney Biondani e Carlão, estampa um “Brazilian Rock” entre aspas, chamando a atenção para o estilo que a banda tocava.  O disco foi relançado em CD em 1995 e 2016.


Empolgado com o resultado do álbum, Netinho embarcou para a Europa na esperança de marcar alguns shows no Velho Mundo, enquanto a banda ficou no Brasil promovendo o disco. Em setembro de 1977, durante uma entrevista para a TV Record, Simas se envolveu em uma briga com um operador de câmera, que acabou falecendo dias depois. A banda foi responsabilizada pela morte e acabou envolvida em um enorme processo, que foi decisivo para o encerramento das atividades em abril de 1978. O grupo só retornaria aos palcos em 2003, reformulado por Netinho, e desde então faz shows pelo país.

A Casa das Máquinas possui uma discografia curta, porém marcante. Seus álbuns são um testemunho de como era fazer rock no Brasil durante a década de 1970 e são essenciais para quem quer conhecer mais sobre o desenvolvimento do estilo em nosso país. Ao menos um deles, Casa de Rock, é um clássico incontestável e presença certa em qualquer coleção que se preze.

Comentários

  1. Muito bom. Tenho os três LP's e desconhecia alguns fatos mencionados aqui, especialmente o que motivou o fim da banda.

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  2. Eu sempre achei que o primeiro LP do Casa das Máquinas tinha influência dos Meninos de Deus, Godspell, Jesus Cristo Superstar, enfim, aquele "pop/rock cristão" do começo dos anos 70. Numa entrevista que fiz com Netinho por e-mail ele me disse que as letras eram do Aroldo e que ele é que tinha "esse lado mais espiritualizado".

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    1. Interessante a sua análise, Emílio, e ela realmente casa com a pegada de algumas músicas do disco. Valeu por comentar.

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  3. Gosto muito do Casa. Já ouvi estes 3 discos várias vezes.

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  4. Grandes trabalhos, principalmente o Lar e o Casa de Rock, e com grandes músicos, Piska, Netinho, Testoni e o ícone Simbas, que gravou o Casa de Rock.

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