A morte de Andre Matos teve um impacto gigantesco no
heavy metal nacional. Repentina e inesperada, sua perda ainda não foi
dimensionada, apesar da enorme dor que causou em fãs, amigos, colegas e todos
que tiveram contato com a sua obra em mais de trinta anos de carreira. E a
maior obra-prima de toda essa trajetória, aclamada em consenso tanto pelo
público como pela crítica, é Holy Land.
Segundo álbum do Angra, Holy Land foi lançado em 23 de
março de 1996 e sucedeu Angels Cry (1993), a igualmente ótima estreia da banda.
Os dois discos são bastante distintos entre si. Enquanto o debut apresentou um
metal melódico alinhado à escola alemã e influenciado tanto pelo Helloween
quanto pelo Iron Maiden, em Holy Land o Angra entrou de cabeça na música
brasileira, trabalhando um álbum conceitual que discorre sobre o Brasil de 1500,
ano em que o país foi descoberto pelos portugueses. Tanto as letras como as
músicas seguem essa abordagem, trazendo para o heavy metal elementos da rica
musicalidade brasileira. E o Angra faz isso de uma maneira mais profunda e erudita que outra
banda contemporânea e conterrânea, o
Sepultura, fez naquele mesmo ano no igualmente clássico Roots. Os discos
tiveram um intervalo de um mês entre seus lançamentos, mostrando que ambas os grupos estavam alinhados, mesmo que inconscientemente.
A principal diferença entre Holy Land e Roots vem do
background dos músicos. Enquanto os irmãos Cavalera construíram sua carreira
dentro de gêneros mais extremos como death e thrash metal, os músicos do Angra
vieram de conservatórios e escolas de música e eram influenciados pelo lado mais erudito do metal,
além de trazerem também aspectos de gêneros mais complexos como o prog e o
jazz. Mas havia um fator determinante nessa mistura toda, e ele era Andre
Matos. Desde cedo, o vocalista sempre dividiu a paixão pelo heavy metal em pé
de igualdade com o amor pela música clássica. Os álbuns com o Viper – Soldiers of
Sunrise (1987) e Theatre of Fate (1989) – já mostravam isso, mas foi no Angra
que Andre intensificou essa união entre os dois gêneros.
Para compor o álbum, o Angra se mudou durante quatro
meses para um sítio no interior de São Paulo, onde o clima bucólico e calmo, em
contraste com a correria predominante em uma metrópole como a capital paulista,
cidade natal do quinteto, proporcionou um contato mais intenso não apenas com a
natureza do local, mas com as próprias raízes histórias que todos nós,
brasileiros, compartilhamos. A abertura de Holy Land é um exemplo dessa
atmosfera e do encontro entre o erudito e o popular, apresentando em “Crossing”
uma missa concebida pelo compositor renascentista italiano Giovanni Pierluigi
da Palestrina, que viveu entre 1525 e 1594 e exerceu enorme ascendência sobre
como a música sacra foi desenvolvida pela Igreja Católica.
Esse início com “Crossing” revela as intenções do Angra
em Holy Land. “Nothing to Say”, que vem a seguir, é ao lado de “Z.I.T.O.” a
única faixa a conversar de maneira mais harmônica com Angels Cry. Ambas são
power metal com doses elevadas de melodia, sendo que “Nothing to Say” traz
ainda batidas de samba em seu trecho inicial. Um dos maiores clássicos do
Angra, presença obrigatória em shows tanto da banda quanto dos projetos futuros
de Andre. Aqui já se percebem as melodias inspiradas na música brasileira, que
ficam claras no trecho central, cujo andamento quebrado e os elementos eruditos
mostram o nível técnico absurdo que a banda vivia na época.
Uma característica forte em Holy Land é a alternância de
climas. São frequentes as introduções, as passagens e as composições mais
calmas, todas elas tendo como protagonista Andre Matos e seu piano. O trecho
inicial de “Silence and Distance” revela uma melodia que vai se desdobrando de
maneira ascendente até desembocar em uma composição mid-tempo e que traz o Angra
explorando um caminho até então inédito em sua carreira. A ponte antes do
refrão, com uma melodia vocal inspiradíssima, e os solos entregues por Kiko
Loureiro e Rafael Bittencourt são um dos um dos grandes momentos do disco.
A principal tour de force de Holy Land vem a seguir, nos
mais de dez minutos de “Carolina IV”. Desde a primeira vez que ouvi, ela se tornou uma das minhas favoritas do universo musical da banda. “Carolina
IV” talvez seja o principal exemplo da musicalidade da formação clássica do
Angra, transitando de maneira absolutamente brilhante pelo metal, música
clássica, latina, brasileira e africana, além de conter lindos coros que saúdam
a deusa Iemanjá em sua parte inicial e arrepiantes arranjos vocais em todo o seu desenvolvimento. Outro ponto
lindo é a citação à “Bebê”, composição do genial Hermeto Pascoal, aqui
reinterpretada pelo quinteto. O longo trecho instrumental na parte central é
não menos que sensacional, unindo diversos gêneros musicais e soando como uma
espécie de metáfora sonora das múltiplas raízes que construíram não apenas a
música brasileira, mas também a cultura do nosso país e a nossa identidade como seres
humanos.
A canção que batiza o disco é outro dos pontos altos.
Iniciando com uma melodia tradicional das rodas de capoeira interpretada por Andre
no piano, evolui calmamente sobre uma base farta de instrumentos característicos da música brasileira como percussão, berimbau, flauta e outros. A parte inicial
conta com uma das interpretações vocais mais incríveis de Andre Matos, com um
timbre ligeiramente diferente do tradicional. As linhas vocais conduzem a melodia,
que explode com o peso das guitarras, mas jamais deixa de lado a sonoridade
fortemente inspirada pela música brasileira. Uma aula de composição, onde
novamente se percebem citações à clássicos nacionais e que é uma das maiores
criações do Angra e de Matos.
O disco segue com “The Shaman”, música de onde Andre, Luis Mariutti e Ricardo Confessori tiraram o nome da banda que montariam
após deixar o Angra, em 2000. As harmonias são destaque, junto com a percussão
e o piano, que conduzem a faixa. O trecho central conta com uma espécie de
interlúdio que caminha pela world music e traz falas em dialetos indígenas,
além de um arranjo que intensifica o clima tribal.
A balada “Make Believe” foi um dos maiores hits do disco,
e se transformou, com o passar dos anos, em um dos grandes clássicos do Angra.
Não à toa, foi tocada por Rafael Bittencourt em frente aos fãs no dia da morte
de Andre Matos, em uma elegia arrepiante para o vocalista. Belíssima, a música
é um dos exemplos da marcante musicalidade da banda e da capacidade dos músicos em
transitar por sonoridades variadas, seja o mais puro e acelerado power metal ou
a mais doce canção de amor.
E é justamente o power metal na mais clássica acepção do termo que o Angra apresenta a seguir com “Z.I.T.O.”. Música feita sob medida
para os fãs do primeiro disco – cujo título é inclusive citado na letra -,
trata-se de uma composição repleta de energia e melodia, além de linhas vocais
pra lá de inspiradas e um refrão grudento. Mesmo com o pé no fundo o Angra
conseguiu entregar doses incríveis de emoção, aspecto esse que ficou ainda mais
evidente após a partida de Andre. Os solos são outro ponto alto, com Kiko e
Rafael mostrando o entrosamento quase celestial que sempre tiveram.
A atmosfera luz e sombra de Holy Land é reafirmada em “Deep Blue”, uma música extremamente contemplativa e onde
Andre Matos mostra o quanto era um compositor acima da média. Aliás, vale citar
que quatro das onze faixas do disco são músicas compostas exclusivamente pelo
vocalista – além de “Deep Blue”, mais “Silence and Distance”, “Holy Land” e “The
Shaman”. Na verdade, a única a não contar com a sua participação é a acústica “Lullaby
for Lucifer”, criação da dupla Loureiro e Bittencourt.
Holy Land é um dos melhores trabalhos do Angra, uma banda
que possui uma discografia repleta de ótimos discos. A estreia com Angels Cry
(1993) alterou parâmetros no metal brasileiro e mostrou ao mundo uma banda
acima da média. Rebirth (2001) deixou claro que havia vida após a partida do
vocalista, baixista e baterista e é um exemplo inspirador de reconstrução. Temple of Shadows (2004) é um dos melhores
álbuns de power metal de todos os tempos, e Omni (2018) demonstrou que a banda
ainda tem muito a dizer. No entanto, Holy Land é o disco mais corajoso,
inovador e, porque não, criativo do Angra. Um marco na história da música brasileira e
um álbum sem igual no heavy metal mundial, com uma dedicação e inspiração nas
composições traduzida em músicas atemporais e com uma dose enorme de
originalidade. Passados mais de vinte anos de seu lançamento, continua soando
atual e não envelheceu nem um pouquinho.
Aqui está a obra-prima da carreira de Andre Matos, seja
com o Angra ou com todas as outras bandas com quem trabalhou. Um testamento
musical impressionante e que merece ser revisitado por quem
já o conhece, ou apresentado a quem nunca o ouviu.
Definiu bem, esse trabalho é um verdadeiro testamento musical da fase áurea da banda, que muito inspirou o cenário musical do gênero no Brasil.
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