Review: Escambau – Leite de Pedra (2019)



Que o Escambau é uma das mais produtivas bandas de rock em atividade no Brasil, isto ninguém pode negar. O que mais impressiona nos curitibanos, porém, é o alto nível que – tirando um ou outro excesso pontual, aqui e ali – os acompanha em cada novo trabalho. Depois do duplo Sopa de Cabeça de Bagre, de 2017, e do EP em espanhol lançado em 2018, que estreitou os laços do grupo com o rock argentino, uma de suas principais influências, nem bem os fãs da banda conseguiram respirar mais fundo e olha eles aí de novo com Leite de Pedra, seu quinto álbum de estúdio.
               
Na capacidade de produzir uma identidade musical forte a partir da alquimia de estilos e influências que seu rock apresenta, percebe-se a maturidade estética do grupo. Se esta característica/qualidade já era bastante nítida em Novo Tentamento (2014) e, especialmente, em Sopa de Cabeça de Bagre, ela se confirma e consolida com o disco recém-lançado, que passeia por diversas sonoridades, abrindo novos caminhos para o som do grupo. 

Desde sua abertura, com "Revoluções Diárias (Segue a Tua Alegria)", percebemos o carnaval de influências e o bom uso feito dos muitos recursos que os músicos da banda dominam com destreza. O riff à la Lenny Kravitz dita o ritmo da canção, mas as similaridades ficam por aí: trata-se de um rock and roll setentista, com letra inspirada e recheada de boas vibrações, onde o grupo mantém afiada sua capacidade de ler o tempo. “Mas ficar dividido não é fácil pra ninguém/Mas tem que admitir que não é fácil pra ninguém”. Primeira música de trabalho do álbum, a canção conta inclusive com um rap na voz de Giovanni Caruso - uma bela oportunidade, aliás, que a banda desperdiçou de fazer uma parceria com algum nome da cena hip hop, o que certamente abrilhantaria ainda mais a faixa, que já figura entre as melhores da carreira dos paranaenses.

Mas as antenas do grupo não se voltam para a situação política/social do país apenas na abertura do disco. Ao contrário, trata-se da tônica deste registro. Tal como nos seus antecessores,aqui, o Brasil atual é retratado de forma muito consistente e nada óbvia, mesmo quando a banda o faz de maneira mais direta, como no pop rock meio indie, irresistível e dançante de "Fascista": “O fascista quer roubar nossos direitos ? quer vomitar suas certezas sobre nós”. Também no quase punk rock de "Assalto", que ecoa as guitarras politizadas dos britânicos do The Clash, o tema social está gravado na espinha dorsal da canção. A explosão de influências passa, ainda, pela bateria jazzística de "Superlativo" e pelas dobras setentistas nas guitarras de "Ruas Antigas de Pedra", com suas mudanças bruscas de andamento, numa atmosfera de faroeste que é coroada pelos belíssimos vocais de Maria Paraguaya.

Atmosférica, também, é a estranhíssima "Inquietações". Neste caso, porém, o adjetivo não tem nada que ver com experimentalismos estéticos, mas sim com o fato de que, apreciada sem a informação prévia de que se trata de uma canção do Escambau, não fosse por sua produção, poderia passar facilmente por uma canção de algum outro grupo, talvez de uma vertente mais melódica e obscura do rock nacional dos anos 1980. Uma canção diferente, enfim, de tudo que o Escambau já produziu. Em sentido inverso, "Leite de Pedra", que empresta título ao álbum e é um de seus grandes momentos, soa muito mais familiar, pois dá continuidade ao som meio floydiano e bastante sofisticado que a banda vem construindo desde seu terceiro álbum. Simbolicamente, é a canção mais importante do disco, afinal tirar leite de pedra parece mesmo ser a função do artista brasileiro que merece assim ser chamado, sempre constrangido por nosso flagrante fracasso cultural e educacional – os limites materiais que conformam nosso trabalho com o espírito.

O encerramento do disco fica por conta de "Meia Noite é Pouco", que alterna momentos fantasmagóricos com andamentos de cabaré. “Mas meia noite é pouco / queremos muitos mais / Se a vida é esse sufoco, louco / Nós somos marginais”. Festejando a vida, portanto, mediante a insistência nessa loucura de ser artista na periferia ocidental, é que Leite de Pedra chega ao fim, projetando grande expectativa nos próximos passos da banda. 

É cedo ainda para qualquer comparação definitiva, mas podemos afirmar, seguramente, que estamos diante de um dos grandes lançamentos do rock brasileiro no ano e, certamente, num disco que ampliará a base de fãs do Escambau, agradando em cheio aos que já os acompanham há mais tempo. Mais coeso que seu antecessor, Leite de Pedra enfeixa um conjunto de grandes canções, dando sentido e esperança ao turbilhão do tempo. Daí que a expressão do título não se restrinja àquele uso já mencionado. Diante destes dias meio assim, loucos de pedra, criar sentido a partir do material mais bruto é também uma atitude necessária perante o mundo: a de olhar para o que está à nossa volta e, embora assustado com os rumos do humano, encontrar caminhos possíveis para uma existência mais rica e autêntica – para celebrar o que é belo, para cortejar a arte, para anunciar a vida.    

Por Marco Aurélio de Souza


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