Naquele tempo, 1975, havia como contar histórias. Não vai
aqui só um saudosismo besta (embora haja um tanto disso), mas uma constatação
de que havia, para a MPB, uma possibilidade e uma ambição de integrar uma
narrativa sobre o Brasil. A possibilidade vinha da plasticidade nas formas -
inauguradas pelo curto-circuito tradição-bossa nova-tropicalismo operado nos
anos 1960 - e das referências intelectuais coletivas. Já a ambição vinha da ideia
de fazer música como um modo de intervenção na realidade.
É desse caldo de cultura que nasce Caça à Raposa,
primeiro grande disco daquela que foi uma das parcerias mais importantes da
MPB: a do violonista e ex-engenheiro João Bosco com o letrista e ex-médico
Aldir Blanc. Não é a estreia de Bosco em disco. Ele viria precedido, em 1972,
de um "Disco de Bolso" do Pasquim, que editava num mesmo compacto um
compositor consagrado de um lado e um desconhecido de outro - Tom Jobim com
"Águas de Março" e João Bosco e Aldir Blanc com "Agnus
Sei". Antes mesmo do primeiro LP (João Bosco, 1973), Elis Regina já
gravara uma composição da dupla, "Bala com Bala" - por sinal, todos
os discos de Elis lançados até 1979 trariam pelo menos uma música de João e
Aldir.
É, entretanto, em Caça à Raposa que a
engenharia precisa da dupla começa a funcionar a todo o vapor. Antes, um
parêntese histórico. O ano de 1975, ou melhor, os anos compreendidos entre 1972
e 1977, parecem ter sido mágicos para a MPB. O clima de combate entre as
posições mais tradicionalistas e o vanguardismo pop tropicalista que havia
marcado a década anterior já estava distante, ao mesmo tempo que o processo de
cristalização e auto-indulgência que paralisaria a MPB no final dos anos 1970 não
tinha começado. É nesse momento de trégua que surge, de vários lugares, uma
música diversa, inteligente, provocadora.
Esse clima de abertura (que precederia a abertura
política, inclusive) permitiu um disco intrigante, de "cenários sonoros"
(na descrição do próprio Bosco) constituídos a partir de um olhar crítico, sem
dúvida, mas ainda curioso e fresco sobre o Brasil.
O disco começa com duas obras-primas, "O Mestre-Sala
dos Mares" e "De Frente pro Crime", que colocam o ouvinte de
cara para a realidade - em ritmo de samba-enredo, contando as "lutas
inglórias de uma história do Brasil delirante ou de um sambinha urbano, num
flagrante da nova violência urbana: 'Tá lá o corpo estendido no chão'."
A veia da crônica urbana exige que se ressuscite um bolero, daqueles derramados, que começa com um "frio em minh'alma", vai indo por "noites vazias" e, numa nota irônica, chega na "ponta de um torturante band aid no calcanhar" em "Dois pra Lá, Dois pra Cá".
As outras histórias de amor do disco, as melancólicas
"Bodas de Prata" e "Violeta do Belford Roxo", retomam, sem
o pejo nem o sarcasmo do tropicalismo, um certo sentimentalismo suburbano que a
bossa nova não achava chique.
Por outra, a Minas natal de João Bosco, que também despontava com o Clube da Esquina, inspira um certo barroquismo de Caça à Raposa e permite incursões quase roqueiras na juvenil "Jardins de Infância". Já em "Kid Cavaquinho", um samba de breque de combate e de responsa, a dupla reafirma a carioquice, o profundo compromisso com os muitos sambas que circulavam ainda pela música brasileira e que seriam a principal matéria-prima e referência de sua carreira posterior.
Se à época Caça à Raposa representou a entrada
vigorosa de João Bosco e Aldir Blanc no cenário da MPB, hoje ele equivale a uma
redescoberta de um Brasil que se foi.
Texto escrito por Bia Abramo e publicado Bizz #203, de julho
de 2006
Disco maravilhoso do começo ao fim.
ResponderExcluirUma maravilha sonora.
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