
Poucos dias antes do Iron
Maiden pisar no palco da Arena do Grêmio e apenas algumas horas
após a apresentação do grupo inglês no estádio do Morumbi, li uma
interessante matéria do amigo Ricardo Seelig. O texto não
apenas fala da nova passagem do sexteto inglês pelo Brasil, jogando luz na
apresentação no Rock in Rio - na verdade, a matéria também propõe uma reflexão.
O comandante da Collectors Room levanta a
lebre sobre a ação do tempo na atividade dos músicos ligados ao rock and roll: "Ao contrário de outros gêneros musicais
como o blues e o jazz, onde o ato de envelhecer parece enobrecer o artista, no
rock a passagem do tempo não é muito bem vista por uma parcela do público e,
principalmente, por grande parte da crítica. Ainda se associa o transcorrer dos
anos com a decadência (...), o que é uma tremenda bobagem". Em contraponto,
acredito que nem sempre estejamos falando bobagem nessa constatação/associação,
pois há diversos exemplos de deterioração causados pelo confronto entre
passagem do tempo e performance artística. Prova disso é que facilmente podemos
encontrar artistas veteranos soando como arremedo de si próprios.
Principalmente se tomarmos por base nomes ligados às cenas advindas dos anos
1960/70/80 - é inegável, estamos vivendo o fim de uma era.
Numa outra via, lembro de
frase pinçada de uma entrevista cedida por Mick Jagger no início dos anos 1980: "Não pretendo chegar
aos 40 anos cantando 'Satisfaction'", afirmou o líder dos Stones. E disse mais, e aqui faço um
link direto com o texto de Seelig: "Gostaria de envelhecer com a dignidade dos músicos de jazz". Hoje sabemos, aos
76, Mick errou feio, pois continua cantando "Satisfaction". Contudo,
seu segundo desejo foi atendido, visto que ele realmente conseguiu envelhecer
com a dignidade de muitos músicos de jazz, porque certamente estamos falando de
um dos mais respeitáveis cantores do rock ainda em atividade.

Começo misturando alho com
bugalhos para engatar nesse 9 de outubro de 2019, agradável quarta-feira de
primavera que demarca a terceira passagem do grupo britânico Iron Maiden pelo
Rio Grande do Sul. E assim como Jagger, o vocalista do Maiden é outro fenômeno a ser
referenciado. Mesmo 15 anos mais jovem, aos 61 anos, Bruce Dickinson ainda é um dos maiores prodígios vocais do heavy metal.
À frente do grupo, em mais de 40 anos de estrada, o sexteto se completa com seu
criador e mentor intelectual, Steve Harris (baixo), mais Dave Murray (guitarra), Adrian Smith (guitarra), Janick Gers (guitarra) e Nicko McBrain (bateria).
Cerca de 40 mil pessoas foram até a Arena do Grêmio
em Porto Alegre, um exército de camisetas com a logotipia clássica da banda, e
certamente ninguém estava lá para ver o show de abertura. O quinteto inglês The
Raven Age conta com o guitarrista George Harris, filho do baixista do Iron. “Meu pai sempre quer ouvir
nossas músicas e dá sua opinião. Na verdade, ele é bastante rígido e diz o que
precisamos mudar ou o que já está bom", revelou George ao site Uol.
Completam o grupo Tony Maue (guitarra), Matt Cox (baixo), Jai Patel (bateria) e
Matt James (vocal). Eles acabam de lançar Conspiracy, álbum que rapidamente
deve cair no esquecimento. Já a atração principal teve mais sorte (ou talento),
pois mora no inconsciente coletivo do rock.
Às 21h, ao som de
“Tranylvania”, numa explosão de imagens no telão com cenas de Legacy of the
Beast, game que inspirou o atual setlist, o público começa a se alvoroçar. Logo
depois o sistema de som detona “Doctor Doctor”, hino do UFO que se tornou
também um perfeito hinário para acelerar os batimentos cardíacos dos fãs de
Iron Maiden, visto que é a canção escolhida para as preliminares finais antes
dos músicos pisarem no palco. A festa está decretada ...


O setlist de Porto Alegre
é o mesmo que foi tocado no Rock in Rio e São Paulo, num show cronometrado e
planejado para beirar a perfeição. Pense numa abertura espetacular, tipicamente
inglesa, um brado que evoca o legado dos Baby Boomers (como são chamados os
nascidos logo após o final da Segunda Guerra Mundial). No telão, cenas em preto e branco da Segunda Guerra e o trecho de um lendário discurso do
primeiro-ministro britânico Winston Churchill. "Aces High" é o maior dos
chutes na porta que o Iron Maiden poderia escolher para abrir suas
apresentações. Uma réplica de um avião Supermarine Spitfire sobrevoa a banda,
impressionante imagem que amplifica o impacto sonoro de um tema que remete aos idos da clássica World Slavery Tour
(1984/85). Não é uma música fácil de ser cantada antes das cordais vocais de
qualquer vocalista estarem completamente aquecidas. Não se trata de uma simples
performance, é um teste de fogo para Bruce!
As guitarras continuam
emparedas em “Where Eagles
Dare”, outra música
incomum nos sets deste século, mais do que bem-vinda nesse tour. “2 Minutes do Midnight” é a primeira
a ganhar um coro monstruoso do público, isso após Bruce Dickinson bater o primeiro
papo com a audiência, para logo depois bradar antes do refrão: “Scream for me Porto Alegre”. E o exército dos
40 mil gritou muito alto. "The
Clansman” traz Bruce
cantando uma música da época que esteve fora do grupo (1994/99), tema que
conhecemos de Virtual XI (1998), com Blaze Bayley a frente dos mics (talvez a
melhor faixa de Blaze do Iron). No palco, Bruce traz a tona outra de suas
paixões, a esgrima. Mesmo que o florete seja trocado por uma réplica de espada
medieval, o vocalista elegantemente coreografa e se movimenta de um lado para o
outro do palco desenhando rabiscos no ar com seu alegórico sabre.

Sempre encontrei em “The Trooper” um dos maiores símbolos do conteúdo intelectual
implícito nas letras do Iron Maiden. Nesse quesito, o grupo também foi um dos
pioneiros, saindo de uma temática engessada, muitas vezes sem conteúdo
relevante, para sobreviver ao teste do tempo. Com músicas como essa o Maiden
simplesmente colocou o heavy metal em outro patamar. A temática é baseada num
evento histórico da cavalaria britânica do século 19, durante a Guerra da
Crimeia. O bardo inglês Alfred Tennyson escreveu um célebre texto sobre o
evento, The Charge of the Light Brigade, relato poético que
impulsionou Steve Harris, o Tolstói do metal, a compor “The Trooper”. O
resultado dessa inspiração até hoje nos mantém boquiabertos, pois estamos
falando de um autêntico apresentar de armas para o quilate da banda que está no
palco – trata-se de uma espécie de tema-síntese do som do Iron Maiden.
Uma curiosidade: antes do
show conheço Bento Dickel, um garoto de apenas 9 anos que nessa terça-feira
teve sua estreia em shows internacionais. Quando pergunto ao jovem fã qual sua
canção preferida, ele não reluta: “The Tropper”. Vários pais levaram seus filhos até a Arena, muitas
crianças e adolescentes. No entanto, a faixa etária predominante do público
certamente pode ser cravada na faixa dos 30/40. E para alegria de Bento,
durante sua canção favorita, tivemos ainda a primeira e única aparição do
morto-vivo mais famoso do rock, Eddie the Head.
Em “Revelations”, o palco muda, vitral azul ao fundo, candelabros laranjas
despencam do alto do teto. Eis mais uma peça de Piece of Mind (1983), o álbum
que contribui com a maior parte das canções (4), seguido de (3) The Number of
the Beast (1982) e (2) Powerslave (1984), ou seja, mais da metade do set
contempla a época de ouro do grupo. Um amigo jornalista me diz que essa escolha
dos temas também leva em conta os views da banda em seu
canal oficial no YouTube.

Tratando-se de um fã de
Iron Maiden que abandonou a banda no contestado Somewhere in Time (1986), um
LP que particularmente está entre meus preferidos do grupo, músicas como “For the Greater Good of God” (2005), “The Wicker Man” (2000) e “Sign of the Cross” (1995), mais uma
da breve era Blaze Bayley, simplesmente não conseguem capturar minha atenção. “Eu tenho o maior respeito por Blaze, pois
ele entrou na banda em um momento muito difícil (…) Ele é uma ótima pessoa”, revelou Dickinson
ao programa de rádio inglês Do You Know Jack?. Eu sei, possivelmente seja
execrado por essa declaração, é inegável que há valores nesses temas,
principalmente em "Sign of the Cross", uma espécie de
"Kashmir" do Iron Maiden, música que Bruce tomou para si. Porém, essa
mesma trinca ainda reforça uma teoria própria de que a ideia de som do Iron já
está esgotada, e que no final das contas, salvo exceções, assim como acontece
com os Stones (novamente uma comparação entre bandas incomparáveis), afora
algum novo tema interessante aqui e acolá, o que grande parte do público
realmente quer ouvir são os clássicos dos anos 1980/90. O próprio desenho do
setlist reforça esse sentimento. No entanto, esse refresco na emoção também é o
instante que ganho tempo para perceber o vigor e o talento do incansável Nicko
McBrain, um rolo compressor que bate da peles com a precisão de um
cirurgião.
Por mais que eu também
ache um exagero pirotécnico Bruce Dickinson ostentar um lança-chamas em “Flight of Icarus”, retornamos
finalmente ao eixo central da obra maideniana, na companhia de um gigantesco
Ícaro gigante no fundo do palco. "Fear of the Dark” é potencializada pela comoção geral da Arena, e é
impressionante perceber - no olho do furacão - a força que canções como essa
transformam os fãs numa estrondosa e uníssona massa sonora. "O público aqui (América do Sul), mas
especialmente o Brasil, é incrível, são os melhores do mundo. Eu evito dizer
isso, porque acho que as pessoas vão ficar com ciúmes, mas é verdade", disse Dickinson
em entrevista a RBS TV.
E o que dizer de “The Number of the Beast”? A lembrança de um Eddie titereiro
maquinando os movimentos de uma figura satânica acorda o menino em mim, um
garoto assombrado pela imagem de uma das capas mais significativas do rock.
Em "Iron Maiden",
música que dá nome a banda, extraída dos primórdios da década de 1980, o
guitarrista Janick Gers faz seu tradicional malabarismo com a guitarra, algo
que me soa extremamente desnecessário. A imagem de Janick pipocando de um lado
ao outro do palco é a presença mais irritante da noite. Enquanto isso, Dave e
Adrian fazem o trabalho sujo ...

Após um breve intervalo, o quinteto retorna ao
palco com “The Evil That Men Do”,
e com uma dobradinha do álbum The
Number of The Beast , “Hallowed
Be Thy Name” e “Run to
the Hills”. Para nós que não os tínhamos no Rio Grando do Sul há onze anos, ver um show
do Iron Maiden condensado em apenas duas horas, ao vivo, é chance única de sentir de
perto a dimensão de como o heavy metal ainda pode ser relevante, grandioso e
apoteótico. E o pior, todos sabemos, não existem peças de reposição no
tabuleiro da música mundial para preencher a horrorosa lacuna que ficará
escancarada quando Bruce, Steve, Dave, Adrian, Janick e Nicko não mais
caminharem juntos como uma banda(o) pela terra. Na verdade, tivemos a sorte de
novamente revê-los por aqui numa grande performance. "O melhor momento do grupo ao vivo
depois do retorno de Bruce Dickinson", sugere o maior dos fãs que
conheço, o amigo Roverto Lenz. Sim, aos 44 anos, o Iron
Maiden envelheceu sem perder o viço.
Ao final do show, me dou por conta de que estou
assistindo ao Iron Maiden pela
primeira vez no mesmo ano em que também vi Saxon (leia o review aqui), dois importantes nomes do New Wave of
British Heavy Metal, movimento musical inglês que se espalhou pela Europa e
pelo mundo propagando o metal, inclusive aqui no Brasil. Tive sorte de viver
esse tempo. I feel blessed ...
O show do Iron Maiden em Porto Alegre marcou a
despedida da mini tour The Legacy of the Beast pelo Brasil. O Maiden segue sua
jornada com apresentação no próximo sábado (12/10) no Estádio do Velez, em Buenos
Aires, para logo depois encerrar sua nova passagem pelo continente
sul-americano com dois shows no Moviestar Arena, em Santiago, no Chile (14 e
15 de outubro). Já estamos com saudades.
Setlist Iron Maiden PoA
Aces High
Where Eagles Dare
2 Minutes to Midnight
The Clansman
The Trooper
Revelations
For the Greater Good of
God
The Wicker Man
Sign of the Cross
Flight of Icarus
Fear of the Dark
The Number of the Beast
Iron Maiden
Encore:
The Evil That Men Do
Hallowed Be Thy Name
Run to the
Hills
Excelente texto. Me senti dentro do show, que embora não tenha ido, vi pela TV o do RIR e a descrição que fez agora me pareceu muito com o que senti vendo o vídeo. Infelizmente para mim, não sei se terei a oportunidade de vê-los por essas bandas novamente.
ResponderExcluirExcepcional banda, curto o Iron desde minha infância!Long Live to Iron Maiden!The best!
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