AmarElo não é apenas mais um disco de rap dessa safra tão
prolífica no cenário atual da música brasileira, mas sim, um disco de um
artista que atingiu o auge de sua maturidade musical e pessoal, ditando junto
com outros nomes importantes os rumos da música contemporânea brasileira. O
terceiro disco oficial de estúdio de Emicida (dado que seus primeiros
lançamentos são mixtapes) apresenta um artista completo, em seu ápice criativo
e com uma liberdade musical que poucos músicos podem experimentar e apresentar
em seus lançamentos. AmarElo está acima de gostar ou não do gênero que rendeu
fama ao rapper paulista, destilando amor e brindando a vida em cada frase, em
cada rima, em cada melodia, em cada batida.
Mais maduro e perspicaz, Emicida tece aqui críticas mais
sutis, inteligentes e lúcidas, mas não menos ásperas às mazelas sociais e,
especialmente, às condições e dificuldades incontestáveis de vida das pessoas
negras. Mas ainda assim, o tom amargurado e ameaçador é substituído por
palavras e sentimentos positivos de coragem, esperança, respeito, amizade e
amor, todos representados pela cor amarela, a cor do otimismo, da alegria e do
combate à depressão e ao suicídio. A música de Emicida vinha há algum tempo
dando indicativos de que chegaria exatamente onde chegou. Ter alcançado esse
nível não é surpresa nenhuma para quem acompanha sua carreira desde o início,
mas ainda assim, sua música consegue surpreender.
“Principia” é uma prece, como que um agradecimento a tudo
que aconteceu na carreira do artista e a todos que fizeram-no chegar até aqui.
Uma batida simples, carregada de uma musicalidade rica, onde a história inteira
da música negra parece tentar se fazer caber suavemente em pouco menos de seis
minutos. Alternando entre frases cortantes e suave poesia, a canção vai
ganhando corpo até deixar o ouvinte sem fôlego em meio a profusão exuberante e
brutal das rimas, culminando em uma oração tão forte e intensa quanto,
proferida com extremo ardor pelo Pastor Henrique Vieira. A faixa ainda conta
com as belíssimas vozes de Fabiana Cozza, Indy Naíse, Marissol Mwaba, Nina
Oliveira e a influência das congadas e sambas de roda nas vozes e coros das
Pastoras do Rosário. O título “Principia” vem do livro de Isaac Newton, Principia Mathematica, o qual o músico descreveu como “as interpretei (as
leis de Newton) como metáforas sobre os corpos e culturas humanas entrando em
contato ao longo da história movidos pela fé, com um recorte bem preciso a
respeito da melhor parte disso”.
“A Ordem Natural das Coisas” é um verdadeiro deleite, com
uma textura quase transcendental, leve e acolhedora como um abraço quente no
inverno. A interpretação do rapper, cantando lindamente como poucas vezes
antes, somado a voz suave e sutil da MC Tha, tornam essa uma das mais belas
canções da carreira do Emicida. Aqui ele flerta com a MPB e com gêneros mais
pop, como os praticados por Projota, por exemplo. A letra emociona
facilmente e remete à “Mãe” do disco anterior. Diferente do que o Criolo fez em
“Não Existe Amor em SP”, Emicida joga nesta canção um olhar afetuoso sobre a
rotina de pessoas comuns que acordam cedo para tocar suas vidas nas grandes
cidades.
A levada suingada de guitarra (que valida a letra de
“Bluesman”, de Baco do Exú do Blues) anuncia a canção mais deliciosa e
despretensiosa do disco. “Pequenas Alegrias da Vida Adulta” é uma agradável
poesia sobre a maturidade que o próprio título propõe e desperta a empatia ao
falar com absoluta sensibilidade de situações pequenas do dia a dia que todos
passamos, ou deveríamos ter o direito de passar, e que o músico só viria a dar
atenção após sua paternidade. A terceira faixa do disco conta com a
participação de Marcos Valle e termina com um áudio de uma história cômica
contada pelo humorista Thiago Ventura.
Não é de hoje que o rap e a música de Emicida flertam com
o samba, mas em “Quem Tem um Amigo Tem Tudo”, com a participação mais que
especial de Zeca Pagodinho, rap e samba tornam-se uma coisa só na mistura da
batida com a cuíca, os metais, o cavaquinho e as palmas em um verdadeiro hino à
amizade. A música também conta com as participações de Tokyo Ska Paradise
Orchestra e Os Prettos.
O riff e a letra
de “Paisagem” clamam por uma calma semelhante àquela que Lenine pediu outrora
em “Paciência”, bradando contra um mundo onde as redes sociais vendem uma falsa
alegria que poucos podem alcançar e falando sobre o quanto algumas tecnologias
e o uso que fazemos delas nos tiram a atenção da paisagem e do que acontece
fora de uma tela.
“Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” tem um dos momentos
mais encantadores do disco em um diálogo de Emicida com sua filha recém
nascida. Uma canção que passeia deliciosamente pela soul music, com uma letra
carregada da afetividade e carinho que transborda por quase todas as faixas
iniciais do álbum. “9nha”, com a participação já recorrente de Drik Barbosa,
engana com suas melodias suaves, com o samba descontraído do refrão e com a
letra remetendo à uma paixão adolescente, quando na verdade fala de de maneira
análoga de um adolescente e sua relação com uma arma de fogo e a romantização/sexualização
da violência. “Ismália” é outro dos grandes momentos do disco, com a
participação de Larissa Luz nas vozes e da icônica atriz Fernanda Montenegro
narrando um trecho de Ismália, poema de Alphonsus de Guimaraens. A letra
traça um paralelo do poema com a vida dos negros ainda tão limitada e muitas
vezes tirada de forma absolutamente covarde.
Guardadas para o final do álbum, ficaram ainda reservadas
duas das músicas mais marcantes do disco, lançadas anteriormente como single.
“Eminência Negra” é um rap bastante tradicional, com uma batida pesada e uma
aura densa. A expressão “eminência parda” tem origem na França. O frade
François Leclerc du Tremblay, o braço direito do cardeal Richelieu Fraçois -
primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642 e arquiteto do absolutismo
francês, – era famoso por seus trajes beges (pardos). Apesar de não ser
cardeal, era chamado de Vossa Eminência devido ao grande poder e influência
que exercia no governo francês. Na política, eminência parda se refere àquele
político que exerce o poder de fato em determinado país, mas não de direito, ou
seja, quem “dá as cartas nos bastidores”. Emicida exalta nesta letra
personalidades negras, quase sempre excluídas dos espaços de poder da
sociedade, dando a expressão “eminência parda” um novo significado,
manifestando a ascensão dos pardos e negros. A faixa conta com as participações
de Dona Onete, Jé Santiago & Papillon.
A faixa que leva o título do disco foi criada a partir de
um trecho de “Sujeito de Sorte”, de Belchior, com as participações de Majur e
Pabllo Vittar, que reforçam o tom social e da diversidade sexual da letra.
Segundo Emicida: "No primeiro passo desse processo [o primeiro single,
“Eminência Parda”], a nossa intenção era que as pessoas se sentissem grandes ao
olharem no espelho. Agora, a ideia é que elas observem ao redor e se enxerguem
maiores do que os seus problemas, independente de quais sejam”. Pabllo Vittar
reforça que “a música é cheia de mensagens importantes, atuais e que retratam a
diversidade, a luta e a força que vivemos todos os dias. O valor social que 'AmarElo' carrega é enorme e vai promover reflexões que precisam, cada vez
mais, ser levantadas”. Trata-se de uma música forte, impactante, mesclando
batidas clássicas do rap de Emicida com sons mais contemporâneos, dando um
desfecho perfeito ao álbum.
O disco fecha com “Libre”, com a participação das gêmeas
do Ibeyi, em um rap furioso que flerta com o funk e a música latina e termina
como um aviso do que está por vir pela frente, lembrando que o músico, apesar
de sua evolução musical e do sucesso alcançado, nunca esqueceu de onde veio e
nem se perdeu do caminho para onde está indo.
Por Luis Fernando Ribeiro
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