Livro: Lords of Chaos, de Michael Moynihan e Didrik Søderlind (2021, Estética Torta)


A cena black metal norueguesa foi um dos fenômenos socioculturais mais intensos da história da música. Ao mesmo tempo que foram capazes de produzir obras de qualidade musical indiscutível e que deram origem a todo um novo gênero musical – o black metal propriamente dito, que antes disso vinha se desenvolvendo gradativamente através de bandas como Venom, Hellhammer e, principalmente, o Bathory -, os integrantes da cena também eram pródigos em cometer atos que chocaram a sociedade de seu país como queimas de igrejas históricas e assassinatos, com direito a dezenas de declarações pra lá de polêmicas e extremamente discutíveis em suas entrevistas.

Toda essa história já foi contada inúmeras vezes em matérias, documentários, filmes e livros. Mas mesmo com a farta produção dedicada a esmiuçar as origens, causas e efeitos do cenário da música extrema nórdica daquela época, nenhuma obra alcançou um impacto cultural e documental tão grande quanto Lords of Chaos, livro escrito pela dupla Michael Moynihan e Didrik Søderlind e publicado pela primeira vez em 1998. Muito disso se deve ao fato de Lords of Chaos ter sido a primeira obra a analisar, de maneira profunda, todo o contexto que levou ao surgimento e desdobramentos do black metal na Noruega, com direito a dezenas de entrevistas com os próprios músicos. Não à toa, o livro é citado até hoje como referência no assunto e serviu de base para o filme homônimo de Jonas Åkerlund lançado em 2018 e que conta a relação entre seus dois principais integrantes, Euronymous e Varg Vikernes.

Lords of Chaos finalmente ganhou uma edição brasileira em 2020 pelas mãos da editora Estética Torta, e a procura foi tão grande que a primeira edição se esgotou rapidamente. O livro foi então rodado novamente, ganhou uma capa diferente da edição anterior e voltou às livrarias. É essa nova edição que tenho em mãos e li nas últimas semanas. Com acabamento de luxo, capa dura, borda em preto, 666 páginas e prefácio exclusivo (a tradução foi realizada por Tavos Mata Machado), o livro é espetacular graficamente e possui um conteúdo que lança muitas luzes sobre um dos períodos mais sombrios da história do metal.

Os capítulos iniciais são dedicados a investigar as origens do lado mais sinistro do rock, desbravando as raízes que levaram ao surgimento de bandas pioneiras na união entra a música e o ocultismo como o Coven, o Black Widow e o próprio Black Sabbath. Moynihan e Søderlind mapeiam o passo a passo do mergulho do rock na escuridão, passando também por pioneiros como Venom, Celtic Frost, King Diamond e o nascimento da cena death metal. O Bathory, com justiça, é apontado como o catalisador de um novo estilo dentro do metal, com álbuns que influenciaram profundamente a cena norueguesa como Blood Fire Death (1988) e Twilight of the Gods (1991). Além disso, a banda brasileira Sarcófago também é mencionada diversas vezes como influência seminal para o True Norwegian Black Metal, tanto musical quanto esteticamente, com o som e as fotos do álbum I.N.R.I. (1987) marcando profundamente os músicos noruegueses.

Todo o desenvolvimento e os acontecimentos que marcaram o black metal na Noruega estão presentes em Lords of Chaos. Do nascimento do Mayhem passando pelo suicídio do vocalista Dead, da abertura da Helvete (loja de discos de Euronymous) às reuniões do Inner Circle (grupo formado pelos principais integrantes da cena e berço das decisões que levariam os membros a fazerem a transição entre a música e as ações propriamente ditas), da amizade à rivalidade entre Euronymous e Varg. Praticamente tudo que ocorreu com o black metal norueguês entre o final da década de 1980 e meados dos anos 1990 é abordado de forma profunda, com dezenas de entrevistas com músicos como os próprios Euronymous e Varg, passando por nomes como Ihsahn, Faust, Abbath, Fenriz e praticamente toda e qualquer pessoa que tenha tido algum papel relevante naquele período.

No entanto, o foco maior da obra é Varg Vikernes. A dupla de autores se debruça sobre a psique complexa do músico, capaz tanto de criar um som único e original como o do Burzum quanto manipular, liderar e inspirar as inúmeras ações violentas que marcaram o movimento. Inegavelmente muito inteligente, Vikernes desenvolve uma retórica que vai do resgate de elementos da história escandinava e dos deuses pagãos até teorias delirantes sobre a raça ariana ter sido criada por alienígenas (no caminho, ele ainda passa por uma conspiração que acredita que os nazistas alemães sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, vivem no interior do planeta e vigiam o mundo através de naves super tecnológicas que nós, ignorantes que somos, confundimos com meros discos voadores). Varg soube usar todos os palcos que a mídia lhe deu para construir uma figura quase mitológica, que no início se vangloriava de ser supostamente satanista mas depois passou a se dizer odinista e adepto do paganismo. Além disso, fica muito claro em diversas partes do livro o racismo, a homofobia, a xenofobia e a misoginia de Vikernes (e não só dele, mas de diversos outros músicos entrevistados para o livro), através de declarações que exteriorizam sem maiores filtros a sua filosofia. Esses pontos são bastante delicados por si só, mas ficam ainda mais controversos com as ramificações que os autores conseguiram traçar, detectando a inspiração dos pensamentos e obras de Vark Vikernes no nascimento não só de outras bandas em diversos países europeus, mas também de movimento racistas, nazistas e de supremacia branca em diversos pontos, desde países próximos como Suécia e Polônia até terras mais distantes como os Estados Unidos.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é justamente esse: a identificação clara da ligação entre diversas bandas de black metal e os movimentos da extrema direita radical europeia, ambos lutando para ver quem consegue ser mais extremo. Todos esses pontos geram uma leitura rica e infinitamente informativa, que abrange desde o ressentimento histórico dos países escandinavos com o cristianismo, imposto à força em terras que eram crentes aos deuses antigos e pagãos, até o impacto comportamental de toda a cena em países prósperos economicamente e que oferecem uma aparente tranquilidade para seus habitantes, como é o caso da Noruega e da Suécia, mas que sob esse manto de austeridade escondem pessoas com desejos de uma vida mais intensa e que fuja da normalidade.

Lords of Chaos é uma obra atemporal. Uma leitura essencial não só para quem é fã de black metal e música extrema, mas também para quem se interessa por antropologia, sociologia, psicologia, filosofia e tudo que envolve o comportamento humano. 

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Comentários

  1. Eu adorei esse livro (não posso dizer o mesmo sobre o filme), embora não tenha lido a versão em português, e sou muito grato aos autores. A obra serviu apenas para renovar e reforçar minha paixão pelo gênero e diversas crenças e pensamentos meus. A minha ressalva é que ele aborda aspectos históricos, psicológicos e sociais com muito mais profundidade do que os aspectos musicais. É um livro que eu indicaria a um fã de heavy metal que já possuísse conhecimento a respeito do Black Metal, mas não a um neofito.

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  2. Otimo livro, comprei a primeira edição e devorei em uma semana.

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  3. Muito bem escrito e profundo, entrevistadas que são figuras pouco conhecidas na cena por quem é de fora. Pra mim, um doa gêneros mais instigantes do metal, até mesmo pelo desequilíbrio da produção artística, que oscila entre obras atemporais e massas sonoras desprovidas de sentido. Entretanto, no aspecto ideológico, aclara como os ideais espúrios e abjetos da extrema direita permeiam muito da produção e dos músicos, de forma que grande parte deles são, de fato, detestáveis. Vide por exemplo um documentário de 2008, no qual o batera do Mayhem exalta o crime de ódio do Faust, aqui abordado extensivamente.

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  4. Este é um livro acadêmico e o respeito e profundidade com que ele trata o BLACK METAL me surpreendeu. Não creio que um headbanger metido a radical, semi analfabeto e que nunca tenha lido um livro na vida consiga passar pela densidade de suas páginas. Quanto ao filme, eu gostei muito dele também! Não consigo concordar com as pessoas que dizem que ele"dilui a história do BLACK METAL NORUEGUÊS PARA AS MASSAS"...Assisti LORD OF CHAOS no meio do povão e podem acreditar que as pessoas acharam o filme violento, nojento e repulsivo, justamente sentimentos que o BLACK METAL quer causar.

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    1. verdade... tenho um amigo assim, exatamente, que ainda usa bracelete de tachinhas aos 40, radicalíssimo... sucumbiu antes da metade do livro!

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